Em votação apertada, retrato da fragmentação política que permeia o continente, a ministra alemã da Defesa (demissionária), Ursula von der Leyen, tornou-se ontem a primeira mulher eleita para o cargo mais importante no complexo político-burocrático da União Europeia (UE). Ratificada no Parlamento Europeu com 383 votos (apenas nove além da maioria exigida), contra 327, ela assumirá em 1; de novembro a presidência da Comissão Europeia (CE), o braço executivo do bloco. E chega determinada a colocar como primeira tarefa a negociação de um ;pacto verde;, que chamou de green deal, para que os países-membros alcancem até 2050 o equilíbrio entre emissões e captura de gases causadores do efeito estufa ; o motor do aquecimento global.
Contagens à parte, o significado do momento ficou ilustrado pela comemoração efusiva entre a vitoriosa e a atual chefe da diplomacia da UE, a ex-chanceler italiana Federica Mogherini, que deixa o posto em novembro, como parte da troca de liderança. Na nova cúpula europeia, ela terá ao lado outra mulher, a francesa Christine Lagarde, à frente do Banco Central Europeu ; também dirigido apenas por homens, até aqui. A repartição dos cargos-chave do bloco, negociada exaustivamente pelos governantes dos países-membros, reservou a presidência do Conselho Europeu para um liberal, o premiê belga, Charles Michel. Os socialistas terão o espanhol Josep Borrell no lugar de Mogherini e o italiano David Sassoli à frente do Parlamento Europeu.
;Em uma democracia, maioria é maioria;, desabafou a eleita, aliviada após duas semanas tensas desde a sua indicação. A chanceler (chefe de governo) da Alemanha, Angela Merkel, que bancou a nomeação da auxiliar e correligionária, comemorou a escolha de ;uma europeísta convicta e convincente;. No mesmo tom, o presidente da França, Emmanuel Macron, parabenizou Ursula no Twitter. ;Hoje, a Europa tem o seu rosto: o rosto do engajamento, da ambição e do progresso;, escreveu. Na contramão, o eurodeputado francês Niclas Bay, da ultradireita anti-UE, ressaltou a estreita base de apoio com que a nova presidente da CE e sua equipe contarão no parlamento de Estrasburgo. ;Seu mandato será muito frágil, semelhante a uma UE sem fôlego.;
Quebra-cabeça
A confirmação de Ursula von der Leyen foi o resultado de uma trabalhosa operação de engenharia política para a montagem do quebra-cabeça que resultou da eleição de maio para a renovação da Eurocâmara. O Partido Popular Europeu (PPE, centro-direita) se manteve como a maior bancada, com 182 cadeiras, seguido pelos socialistas, com 154. Mas as duas maiores ;famílias políticas; do bloco, que mantinham a hegemonia no comando da CE, perderam a maioria parlamentar e tiveram de negociar o apoio dos liberais, uma das forças ascendentes, com 108 deputados. Os verdes (74), igualmente em ascensão, fecharam posição contra o acordo negociado pelos líderes em Bruxelas, ao lado da esquerda radical (41). Votaram contra, também em bloco, os populistas de direita, mas a indicada conseguiu votos suficientes entre os conservadores eurocéticos para compensar as dissidências entre os socialistas ; em especial entre os alemães, descontentes com o nome bancado pela chanceler.
Sintomático do quadro político em Estrasburgo, o discurso com que a candidata se apresentou ao plenário, antes da votação, teve a questão climática como tema central. ;Vou propor um pacto verde nos primeiros 100 dias do meu mandato;, prometeu. ;Vamos apresentar a primeira lei climática da história da UE, para fixar a meta legal de alcançar a neutralidade de carbono até 2050;, acrescentou. A agenda política traçada pela nova presidente da CE (leia o quadro) inclui ainda medidas no campo social, em particular no terreno do emprego e dos salários, e o desafio do Brexit, o processo pelo qual o Reino Unido deixará o bloco. A separação efetiva está marcada para 31 de outubro, véspera da posse do novo comando, mas Ursula acenou com novo adiamento, ;se for necessário mais tempo por uma boa razão;.
;Em uma democracia, maioria é maioria;
Ursula von der Leyen, presidente eleita da Comissão Europeia
Perfil
De volta a
Bruxelas
; Silvio Queiroz
A nova presidente da Comissão Europeia (CE) tem uma trajetória que espelha a da sua madrinha política, a chanceler Angela Merkel. A despeito da origem quase aristocrática, com o pai uma figura de proa na política do estado alemão da Baixa Saxônia, Ursula von der Leyen teve de aprender a abrir caminhos. E foi de braços com a ;caiserina; que saltou do primeiro mandato como deputada regional em Hannover, conquistado em 2002, para a presença em todos os governos federais desde a eleição de Merkel, em 2005. No âmbito alemão e europeu, as duas personificam a ascensão feminina em um contexto social marcado pela saturação com a política tradicional e pela atenção crescente à questão ambiental.
O projeto da integração continental está praticamente no DNA de Von der Leyen, nascida em outubro de 1958, em Bruxelas ; já então, o centro institucional da hoje União Europeia (UE). R;schen (;Rosinha;), como é chamada em família, viveu na capital belga até o início da adolescência e voltou à Alemanha fluente também em francês e inglês. Formou-se em medicina e constituiu uma família atípica para os padrões atuais, com sete filhos, em um país onde as mulheres da sua geração trocaram as funções domésticas tradicionais pela carreira profissional e, eventualmente, política.
Foi com essas credenciais que se tornou a primeira mulher a comandar o Ministério da Defesa, em 2013, no início do terceiro governo da líder da democracia cristã. Na época, era vista como uma espécie de sucessora em preparação, mas esbarrou em algo mais do que as esperadas resistências de um ambiente masculino e machista. Sofreu duras críticas por conta de equipamento bélico obsoleto e investimentos abaixo do esperado pela cúpula militar.
Apontada em pesquisa do jornal Bild como um dos dois ministros menos competentes, foi preterida na sucessão interna da União Democrata Cristã (CDU) em favor de Annegret Kremp-Karrenbauer. Parecia carta fora do baralho quando o impasse na escolha do novo chefe da CE abriu uma oportunidade para o relançamento da carreira ; agora, na cidade onde Ursula nasceu e cresceu.
Programa para
o século 21
Principais destaques do discurso e Ursula von der Leyen no Parlamento Europeu
Green Deal
Parafraseando o ;Big Deal; social de Franklin Roosevelt, nos EUA da depressão dos anos 1930, a nova presidente da CE se compromete a transformar a Europa, até 2050, no primeiro continente com equilíbrio entre as emissões e a absorção de gases causadores do efeito estufa.
Agenda social
Ursula von der Leyen defende que os trabalhadores de tempo integral tenham ;um salário mínimo que permita uma vida digna;. Em uma UE com altos índices de desocupação, sobretudo nos países do sul e entre os jovens, ela aposta no seguro desemprego e no acesso universal à saúde e à educação.
Igualdade de gênero
A primeira mulher à frente do Executivo comunitário se compromete a lutar pela paridade de salários com os homens. No discurso de ontem ao Parlamento Europeu, pediu que se ;fale abertamente sobre a violência contra as mulheres; e prometeu incluir esse tipo de agressão como crime.
Imigração
A nova presidente da CE promete ;um novo pacto sobre migração e asilo; no continente e quer antecipar para 2024, três anos antes do previsto, a mobilização de 10 mil guardas de fronteira e agentes da Guarda Costeira para conter a chegada ilegal de estrangeiros aos portos do Mediterrâneo e às fronteiras terrestres com a Turquia.
Democracia interna
O ajuste das relações de poder entre a CE, o Conselho Europeu (que reúne os governantes dos países-membros) e a sociedade civil está entre as metas da nova chefe do Executivo europeu. No discurso em Estrasburgo, ela prometeu organizar uma conferência para discutir reformas na UE a partir de propostas de grupos de cidadãos. Também defendeu a ampliação do direito de iniciativa legislativa da Eurocâmara.
Brexit
Sobre o tema candente da saída do Reino Unido, Von der Leyen se disse disposta a dar mais tempo a Londres para a efetivação do rompimento, marcada para 31 de outubro, desde que exista ;uma boa razão; que justifique a prorrogação. Sobre o acordo negociado com a premiê demissionária Theresa May, e rejeitado três vezes pelo parlamento britânico, ela sustenta que é ;o melhor e o único possível;.