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Impasse no mar

Polêmica envolvendo o desembarque, na Itália, de pessoas resgatadas pela ONG Sea Watch suscita debate sobre as tensões entre os direitos humanos e a soberania de Estados costeiros. Especialistas sustentam que emergências justificam desobediência civil


Imagine-se um migrante cujo bote naufragou. Depois de quase morrer, você foi salvo pelo barco pertencente a uma organização não governamental. Boa parte dos resgatados apresenta graves problemas de saúde e, se não receberem atendimento médico em terra firme, perderão a vida. A capitã da embarcação ignora os alertas das autoridades locais e atraca no porto mais próximo. Longe de ser apenas exercício de imaginação, isso ocorreu em 29 de junho, quando o barco Sea-Watch 3 chegou a Lampedusa, na Itália. O ministro do Interior italiano, Matteo Salvini, qualificou a capitã Carola Rackete de ;criminosa; e ;pirata;. Depois de vários dias detida, a alemã foi libertada e, hoje, enfrenta ameaças de morte. No último sábado, um barco italiano com 41 migrantes resgatados atracou na mesma ilha, após decretar estado de emergência ante as ;deploráveis condições de higiene a bordo;. Os dois casos instigaram um debate sobre a tensão entre o chamado direito internacional dos direitos humanos e a soberania de países costeiros considerados seguros para receber os ilegais.

Professor de direito internacional da Universidade de Haifa (Israel) e advogado de migrantes resgatados pela ONG Sea Watch em novembro de 2017, Itamar Mann afirmou ao Correio que Carola Rackete foi obrigada a desembarcar os migrantes no porto de segurança mais próximo. ;Essa é uma norma bem estabelecida. A Itália não pode fechar os portos a barcos de resgate de migrantes. Isso seria uma medida discriminatória, aplicada de forma seletiva; portanto, ilegal. Para mim, está claro que o direito internacional está ao lado da Sea Watch neste caso;, comentou.

Segundo ele, a questão é se Rackete e o seu barco Sea Watch-3 podem ignorar instruções das autoridades italianas. ;Sob o direito internacional, os Estados têm a prerrogativa de reforçar suas fronteiras. No entanto, quando um governo impõe uma medida ilegal, pode ser justificável a adoção de uma medida de desobediência civil.;



Mann reconhece a existência, nos últimos anos, de uma inerente tensão entre os interesses nacionais e o direito internacional, incluindo a lei de refugiados. Ele explicou que, depois da Segunda Guerra Mundial, as nações se uniram para forjar tratados de proteção a pessoas que fogem da perseguição política, da pobreza extrema, da guerra civil e de regimes autoritários. ;Parte do problema é que as exigências das leis são mínimas, além de demandarem salvaguarda apenas de parte daqueles que escapam de condições terríveis.;

O especialista de Haifa vê com preocupação a tendência de países de extrema direita de criminalizarem atos de solidariedade humana. ;A proposta é amedrontar as pessoas, lançando-as ao silêncio ; a essência de uma política autoritária. Ainda que não prejudique as chances de pessoas necessitadas receberem proteção, isso elimina direitos democráticos básicos em países europeus desenvolvidos e nos Estados Unidos;, disse Mann.

Nora Markard, professora de direito constitucional da Universidade de Hamburgo, admitiu que, como regra geral, o desembarque de passageiros resgatados é decisão soberana de qualquer Estado costeiro. ;Este é um problema, por se tratar de uma grande lacuna no direito internacional do mar. Um capitão de um navio tem a obrigação de resgatar pessoas em perigo no mar e, depois, entregá-las a um ;lugar de segurança;. Qualquer lugar que não seja seguro, como a Líbia, está fora de questão. Mas não há regra sobre qual porto especificamente tem de servir como um local de segurança;, disse.

;Qualquer Estado tem o direito soberano de dizer sim ou não ao desembarque. A Itália disse ;não; (assim como Malta). Esse tipo de situação coloca os capitães de navios ; em geral, embarcações comerciais com um cronograma apertado ; em uma posição insustentável e os desencoraja de resgatar migrantes.; Markard aponta, porém, que existe uma exceção à soberania de um Estado costeiro: a emergência por motivos humanitários. Uma crise sanitária a bordo faculta ao capitão a decisão de atracar ou não no porto mais seguro. ;Na minha opinião, a Itália fracassou em respeitar o direito internacional do mar, enquanto Carola Rackete cumpriu com suas obrigações estabelecidas pelo direito internacional;, afirmou.



Salvamento

Moritz Baumg;rtel, professor assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Utrecht (Holanda), sustentou à reportagem que o direito marítimo internacional impõe o dever de todos de salvarem pessoas em perigo nos mares. ;A Convenção Europeia dos Direitos Humanos obriga Estados, como a Itália, a não devolverem pessoas aos países onde corram o risco de serem mortas ou torturadas. A Itália é um local seguro, mas não está obrigada, sob o direito marítimo internacional, a abrir seus portos. Em outras palavras, ela pode negar o desembarque;, disse.

Baumg;rtel culpa a Itália e outras nações europeias pela crise atual. Ele lembra que, até poucos anos atrás, esses Estados conduziam operações de busca e resgate próximo à costa da Líbia. Insatisfeitos com esse status quo, líderes da Europa suspenderam essas missões. ;A questão da soberania a ser levantada é a seguinte: os Estados podem evitar suas responsabilidades simplesmente nada fazendo? Na minha compreensão, isso não pode ser uma boa interpretação da lei dos direitos humanos. Vidas estão em jogo, e todos estão plenamente conscientes disso.;



;Ela (Carola Rackete) viola as leis e ataca navios militares italianos, e depois me processa. Não tenho medo dos mafiosos, imagine então de uma comunista alemã rica e mimada... Beijões;
Matteo Salvin, ministro do Interior da Itália