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Repressão e horror

Michelle Bachelet, alta comissária para os Direitos Humanos das Nações Unidas, denuncia "erosão" do Estado de direito e execuções extrajudiciais. Regime de Nicolás Maduro desqualifica relatório e anuncia a libertação de 22 presos políticos


A Venezuela reagiu ao relatório da alta comissária para os Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), Michelle Bachelet, com a libertação de 22 presos políticos, entre eles o jornalista Braulio Jatar Alonso (leia o Três Perguntas Para) e a juíza Lourdes Afiuni. ;A bem-vinda libertação de 62 presos (neste mês), além de mais 22 soltos ontem (quinta-feira), e a aceitação das autoridades de dois funcionários dos direitos humanos no país significam o começo de um compromisso positivo do país com seus numerosos assuntos de direitos humanos;, declarou Bachelet, durante discurso no Conselho dos Direitos Humanos da ONU, em Genebra.

A ex-presidenta chilena denunciou a ;erosão; do Estado de direito na Venezuela e o ;número surpreendentemente elevado; de supostas execuções extrajudiciais cometidas pelas forças de segurança a mando do regime de Nicolás Maduro. Por sua vez, o atual presidente chileno, Sebastián Piñera, anunciou que o seu país vetará a entrada de mais de 100 venezuelanos ligados diretamente a Maduro. A apresentação do relatório coincidiu com o Dia da Independência da Venezuela, lembrado com um desfile militar no Paseo Los Próceres, em Caracas, e com protestos da oposição, liderada pelo presidente autodeclarado Juan Guaidó.

;As principais instituições e o estado de direito na Venezuela sofreram uma erosão;, advertiu Bachelet, ao revelar que, durante as operações policiais em 2018, foram registrados 5.287 assassinatos extrajudiciais ; a maioria cometida, segundo ela, pelas Forças Especiais (FAES). ;O exercício da liberdade de opinião, de expressão, de associação e de reunião e o direito a participar na vida pública comportam um risco de represálias e de repressão;, acrescentou.

Em entrevista ao Correio, por telefone, Braulio Jatar elogiou o informe das Nações Unidas. ;O relatório de Bachelet é demolidor em suas verdades. Mostra simplesmente um Estado arbitrário sem controles, impondo à força o seu sistema;, disse o advogado e jornalista, que cumpria prisão domiciliar havia 1 ano, depois de dois anos em regime fechado.

;Desvios pontuais;
Bachelet explicou que o relatório ;menciona ataques a opositores reais ou supostos e a defensores dos direitos humanos, que vão desde ameaças e campanhas de difamação à detenção arbitrária, tortura e maus-tratos, violência sexual, assassinatos e desaparecimentos forçados;, afirmou a alta comissária, que visitou Caracas de 19 a 21 de junho passado. William Castillo, vice-chanceler da Venezuela, admitiu ;desvios pontuais; das forças de segurança e ;fragilidades do sistema judicial;. No entanto, destacou que o Palácio de Miraflores ;rejeita categoricamente (a acusação de) criminalização das forças de segurança e da Força Armada Nacional Bolivariana;.

Braulio adverte que o informe da ONU não será ;desvirtuado; pela libertação de 62 presos políticos. ;Há mais de 600 prisioneiros políticos na Venezuela. Além disso, a Justiça pode revogar, a qualquer momento, as medidas cautelares e nos devolver ao cárcere. Esse procedimento está completamente viciado, não é algo similar ao que foi feito pelo presidente nicaraguense, Daniel Ortega, ao solicitar a aprovação de uma lei de anistia no Congresso;, explicou. Para o jornalista libertado ontem, a suposta concessão do regime de Maduro ;não apagará, de modo algum, a contundência e o drama expostos no relatório, que aborda desde as condições socioeconômicas e políticas do país à perseguição e à execução extrajudicial encampada por grupos policiais;.

Corte de Haia
Também preso político, hoje exilado em Madri, o ex-prefeito de Caracas Antonio Ledezma considera que o documento apresentado por Bachelet aponta a Venezuela como ;um Estado foragido que viola, de maneira continuada, os direitos humanos e adota a tortura como padrão de conduta, a fim de perseguir e fustigar dissidentes;. ;Esse informe deve ser encaminhado ao Tribunal Penal Internacional (TPI), pois, como detalha Bachelet, Maduro e seus aliados são responsáveis por crimes de lesa-humanidade. Cabe ao TPI processá-los por esses delitos, de acordo com o Estatuto de Roma;, defendeu.

Ledezma acredita que a libertação de 22 prisioneiros é uma estratégia usada por Maduro para confundir a opinião pública nacional e internacional. ;Trata-se de uma ditadura que simplesmente joga com a carne humana, como se fosse um ficha capaz de ser usada em operações políticas na mesa de negociações.; O ex-prefeito concorda com a decisão do Chile de restringir a entrada de pessoas ligadas a Maduro. ;É uma medida efetiva prática concreta, a qual vai além de resoluções teóricas, das quais Maduro debocha. Essa proibição deve ser imitada por outros governos da região, pois é hora de fechar a fronteira a todos esses delinquentes que cometem todo tipo de delitos na Venezuela;, comentou.

;O informe de Bachelet é impecável e cobre todos os aspectos da repressão na Venezuela, como os ataques à liberdade de expressão, além da crise humanitária, sanitária, educacional e alimentar. No espectro dos direitos humanos, ele cobre muito bem tudo o que tem a ver com tortura e com presos sem julgamento. Também acusa o Estado de violações totais ao Estado direito e chega a analisar as repercussões dessas violações sobre o setor indígena, um grupo muito pequeno da população;, acrescentou Miguel Henrique Otero, 71 anos, presidente editor do jornal El Nacional (de Caracas) e hoje exilado em Madri.


;As principais instituições e o Estado de direito na Venezuela sofreram uma erosão;

;O exercício da liberdade de opinião, de expressão, de associação e de reunião e o direito a participar da vida pública comportam um risco de represálias e de repressão;
Michelle Bachelet, alta comissária para os Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU)



Eu acho...

;Espero que se mantenha a solidaridade do presidente Jair Bolsonaro e de governo brasileiro em relação à Venezuela. Também anseio que se possa aplicar sanções no âmbito da América Latina. Canadá, Estados Unidos e União Europeia impuseram ações contra o regime de Nicolás Maduro. Passou da hora de países de governos representados pelo Grupo de Lima apresentarem medidas sancionatórias específicas.;


Antonio Ledezma, ex-prefeito de Caracas e preso político foragido e exilado em Madri

;A consequência do relatório de Bachelet é muito importante, por se tratar de algo contundente e capaz de derrubar o regime. Ele circulará em mais de 200 países da ONU. Essas nações terão a informação real sobre o que está se passando na Venezuela. Este é um golpe muito forte para o regime de Maduro, que tenta esconder as coisas e dar justificativas.;


Miguel Henrique Otero, presidente-editor do jornal El Nacional (de Caracas), vive exilado em Madri


Três perguntas para


Braulio Jatar Alonso, advogado, jornalista, editor do portal Reporte Confidencial e ex-preso político, solto anteontem

Por quanto tempo o senhor esteve detido e por quais motivos?
Eu estive preso por quase três anos. No primeiro ano, passei por quatro centros de detenção distintos. No último ano, fiquei em prisão domiciliar. Eles nos acusaram, em 2016, de perturbar o bom andamento do que era uma reunião do grupo de países não alinhados, na Ilha de Margarita. Isso é algo absolutamente falso, como sabe o mundo inteiro. A ONU qualificou a minha detenção como arbitrária. Temos um portal de nortícias, o reporteconfidencial.info, o mais importante do estado de Nueva Esparta e um dos maiores da Venezuela. O que fizemos foi informar que, um dia antes, tinha ocorrido um panelaço contra a comitiva de Nicolás Maduro. No dia seguinte, quando reproduzimos em uma rádio o material do portal, eles nos detiveram arbitrariamente e nos sequestraram. Nos primeiros nove meses, minha saúde sofreu importante deterioração. Perdi 22kg em três meses que passei nas celas de isolamento.

O senhor esperava por sua libertação?
A minha liberdade foi anunciada pela alta comissária para os Direitos Humanos da ONU (Michelle Bachelet), a quem estou muito agradecido. No entanto, ela está em suspenso, pois não recebi nenhuma notificação. O que ocorreu foi que a polícia que tinha a custódia da minha prisão domiciliar, a última das cinco fases de privação de liberdade, me informou que estava se retirando por ter recebido um ofício do tribunal. O que me disseram é que tenho de me apresentar ao tribunal, na segunda-feira, para me inteirar da decisão da Corte. A ONU ordenou minha liberdade plena e uma indenização pelos danos causados nesse período. Nessa causa arbitrária, injusta e ilegal, qualificada pela ONU, exigem que eu me apresente a cada 15 dias. Também estou proibido de deixar o território de Nueva Esparta e a Venezuela. O tribunal pode revogar ou mudar a ação cautelar. Esse tempo pendente da causa é como ser retirado de uma jaula e colocado em uma cadeia de 20m. O que você tem são 20m de liberdade. Não creio que isso seja liberdade.

Como vê o relatório apresentado por Bachelet?
O relatório da ex-presidenta chilena e atual alta comissária para os Direitos Humanos da ONU é de uma verdade devastadora e demolidora. Eu, na condição de jornalista e de advogado, tenho estado com ;a voz no pescoço;, gritando essa verdade e me opondo às arbitrariedades sistemáticas produzidas na Venezuela há vários anos. Finalmente, o transbordamento de venezuelanos pela fronteira pôs em alerta o resto dos países. Agora, o que faz valentemente a alta comissária é documentar uma verdade que há anos ocorre na Venezuela. (RC)