A decisão de retomar as negociações sobre o arsenal nuclear norte-coreano, em nível de delegações técnico-diplomáticas, e um convite para que o líder do regime comunista visite os Estados Unidos, em data nem sequer cogitada, são os resultados concretos do breve encontro mantido ontem por Donald Trump e Kim Jong-un na Zona Desmilitarizada (DMZ) que divide as Coreias desde 1953. Mas o presidente americano partiu de volta para Washington levando na bagagem o impacto da imagem mais marcante do dia: após um rápido diálogo, aparentemente de improviso, ele se tornou o primeiro ocupante da Casa Branca a cruzar a linha de armistício e pisar em solo da Coreia do Norte.
;É um grande dia para o mundo;, comemorou Trump, que se disse ;orgulhoso por ter cruzado a linha;. Kim, que depois o acompanhou para uma reunião do lado sul-coreano da vila de Panmunjon, palco de negociações entre os regimes de Pyongyang e Seul ao longo das quase sete décadas de separação, já tinha atravessado a fronteira no ano passado para encontrar o presidente Moon Jae-in. ;O fato de que nossos dois países, apesar de uma longa relação de hostilidades, podem apertar as mãos pela paz em um local que simboliza a divisão demonstra que o presente é melhor que o passado;, respondeu o líder comunista.
Ao fim de 45 minutos, com a presença de Moon na parte final, os três governantes caminharam de volta até a linha de armistício pintada no chão ao longo da vila onde foi assinada a trégua que interrompeu a Guerra da Coreia (1950-1953) ; um conflito ainda não encerrado, formalmente, por um acordo de paz. Antes de retornar a Seul e embarcar de volta para Washington, Trump falou à imprensa sobre o encontro, classificado como ;histórico; pela mídia oficial norte-coreana. Confirmou que equipes de negociadores retomarão as conversações nucleares ;nas próximas duas ou três semanas; e anunciou ter feito o convite para que Kim visite os EUA, sem mencionar uma data. ;Isso acontecerá em algum momento;, afirmou.
Improviso
Foi o presidente americano quem relatou à imprensa como se desenrolou o encontro, aparentemente definido a partir de uma proposta feita por ele a Kim por Twitter, na noite de sexta-feira (horário de Brasília), horas antes de deixar o Japão com destino a Seul ; uma visita programada como parte da viagem para assistir à reunião do G20, em Osaka. Foi apenas na manhã de ontem que o governo da Coreia do Sul confirmou a presença de Kim em Panmunjon. Os dois se cumprimentaram ao pé da escadaria que leva do lado sul-coreano da vila até a demarcação da fronteira, com o americano a um degrau do limite.
;Eu disse: ;Você quer que eu cruze a linha?;. Ele respondeu: ;Eu me sentirei muito honrado se você cruzar;. Eu realmente não sabia o que ele ia me dizer;, descreveu o presidente americano. Trump deu vários passos em companhia de Kim, em solo norte-coreano, e os dois posaram para os fotógrafos, antes de retornarem para o setor sul-coreano da vila, onde se reuniram na Casa da Paz. Consciente do conteúdo simbólico e do apelo de mídia do encontro que acabava de reconstituir para os jornalistas, o presidente americano permitiu-se ainda uma confissão aliviada. Garantiu que, quando decidiu tuitar o convite, não sabia se o líder comunista o aceitaria. ;Se ele não tivesse vindo, a imprensa não me perdoaria.;
;Teatro;
Unânimes quanto ao impacto das cenas registradas na DMZ, os analistas se dividem sobre o alcance real de uma iniciativa que, para alguns, pode se resumir a uma ação de publicidade ; especialidade reconhecida de Donald Trump. O terceiro encontro com Kim se segue à frustração da cúpula anterior, em fevereiro passado, encerrada com a partida antecipada do americano, insatisfeito com a falta de progressos quanto ao desarmamento nuclear norte-coreano. O fracasso de Hanói contrastou com a euforia de junho de 2018, em Cingapura, quando governantes dos dois países se reuniram pela primeira vez.
Para David Kim, do grupo de pesquisas Stimson Center, tudo dependerá do desenrolar das conversações entre os negociadores das duas partes. ;O encontro tem potencial para relançar as negociações travadas;, avalia o estudioso. ;Mas o que nos falta agora é substância, e não teatro.;
Soo Kim, ex-analista da Agência Central de Inteligência (CIA) americana e de origem coreana, viu no gesto do presidente americano uma vitória diplomática para o líder norte-coreano. ;Ele não precisou mover um dedo para que Trump cruzasse a DMZ;, apontou. Go Myong-hyun, do Instituto Asan de Estudos Políticos, de Seul, tem visão exatamente oposta: ;Foi um presente enorme de Kim para Trump;. Na sua interpretação, Pyongyang deu a Washington ;uma oportunidade para manter viva a diplomacia graças ao vínculo pessoal;.
Mintaro Oba, ex-funcionário do Departamento de Estado, compara as relações entre EUA e Coreia do Norte a uma ;diplomacia do desfibrilador;: ;O processo se mantém vivo por meio de choques elétricos, sem tratar dos problemas de fundo;.
Dois anos de idas e vindas
Como evoluíram as relações entre Donald Trump e Kim Jong-un
Ameaças nucleares -
Em 2 de janeiro de 2017, pouco antes de tomar posse, o presidente dos EUA afirmou que a Coreia do Norte jamais poderia desenvolver uma arma nuclear capaz de atingir o território americano. Em abril, enviou sinais contraditórios, ao se referir a Kim como ;um louco com armas nucleares;. Em julho de 2017, Pyongyang lançou dois mísseis intercontinentais e Kim afirmou que ;todo o território dos EUA está ao nosso alcance;. Em resposta, Trump prometeu ;fogo e ira; contra a Coreia do Norte. Em 3 de setembro, Pyongyang anunciou ter testado com sucesso uma bomba de hidrogênio.
Insultos pessoais
Ainda no mesmo mês, discursando na Assembleia-Geral da ONU, Trump chama Kim de ;pequeno homem dos foguetes; ; ironia que remete à canção Rocket man, de Elton John. Dois dias depois, o líder norte-coreano prometeu ;castigar com fogo o senil americano mentalmente transtornado;. Em novembro, Trump volta à carga e chama Kim de ;cachorro louco;. No fim do ano, Kim revela que mantém em seu gabinete o ;botão nuclear;. O presidente americano responde nos primeiros dias de 2018, pelo Twitter: ;Alguém desse debilitado regime poderia informar a ele que eu também tenho um botão nuclear, que é maior e mais poderoso que o dele e funciona;.
Emissários em Pyongyang
Em março de 2018, Trump surpreende o mundo ao aceitar um convite de Kim, transmitido pela Coreia do Sul após os Jogos Olímpicos de Inverno, marcados por uma espetacular redução nas tensões intercoreanas. Em abril, ainda como chefe da CIA, e em maio, já como secretário de Estado, Mike Pompeo viaja a Pyongyang.
;Reunião fantástica;
Um aperto de mãos entre Kim e Trump, em 12 de junho, em Cingapura, é a imagem do primeiro encontro da história entre governantes dos dois países. líder norte-coreano saúda um ;encontro histórico;, e o presidente americano comemora uma ;reunião fantástica;. Os dois assinam um documento pelo qual Pyongyang se compromete a trabalhar a favor da ;desnuclearização completa da Península Coreana;, enquanto Washington promete ;garantias de segurança; ao regime comunista. Desde então, Trump passa a destacar a ;amizade; com Kim ; chega a dizer que os dois ;se apaixonaram;.
Fracasso em Hanói
Após vários meses de negociações infrutíferas sobre a questão nuclear, os dois líderes voltam a ser reunir na capital do Vietnã, em 28 de fevereiro de 2019, mas a segunda cúpula em pouco mais de seis meses termina em fiasco. As divergêcias se assentam na exigência de Pyongyang pelo fim das sanções americanas e nas de Washington quanto ao desarmamento nuclear da Coreia do Norte. No fim de abril, Kim visita a Rússia para a primeira reunião com Vladimir Putin. Lá, acusa os EUA de terem agido ;de má-fé; em Hanói e avisa que a situação na península alcançou um ;ponto crítico;. No início de maio, Pyongyang volta a testar mísseis de curto alcance pela primeira vez desde novembro de 2017. Trump reitera a confiança no líder norte-coreano.