Jornal Correio Braziliense

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Conexão diplomática



O unilateralismo tem seu preço

A crise em andamento entre Estados Unidos e Irã, ainda sem desfecho à vista nem previsível, encerra lições sobre o preço, para um país, de abraçar o caminho da diplomacia unilateral, aquela assentada em uma compreensão estanque do que seriam ;os interesses nacionais; ; como se eles fossem perseguidos e afirmados apenas e tão somente pelo alheiamento voluntário ao sistema multilateral de forças. Na leitura de diplomatas de países de certa maneira equidistantes das partes em conflito, embora diretamente interesssados no desenrolar dos acontecimentos, os vaivéns de Donald Trump, da ordem de ataque ao recuo nos últimos minutos, expressa apenas os desafios de uma superpotência que optou pelo caminho do confronto unilateral com os possíveis rivais e adversários.

É na decisão tomada por Trump, um ano atrás, de retirar os EUA do acordo nuclear firmado em 2015 com o regime de Teerã e mais cinco potências que se busca o fio da meada. O rompimento, prenunciado pelo então candidato a presidente na campanha vitoriosa pela Casa Branca, em 2016, colocou Washington em descompasso com os aliados europeus e mais duas potências ; Rússia e China ; signatárias do documento negociado sob o governo de Barack Obama. Para muitos, mais um gesto pautado, antes de mais nada, pelo empenho em desfazer a obra política do antecessor.

Passado um ano da denúncia do acordo, entrou em vigor uma nova rodada de sanções ; unilaterais ; extensivas a terceiros países. Os EUA excluirão de negócios no país empresas de qualquer parte do mundo que sigam importando petróleo iraniano. São afetados não apenas parceiros europeus , mas também aliados de peso em outras regiões, como o Japão.

Não por acaso, faltou eco à escalada retórica e militar das últimas semanas. Da Europa, da Ásia e das demais regiões, com a exceção estridente da Arábia Saudita e o silêncio sintomático de Israel, o que se ouviu foram chamados à moderação e à contenção da crise.

Nostalgia

Entre emissários externos que acompanharam a trajetória internacional do Brasil nas últimas duas décadas, a degradação da situação no estratégico Golfo Pérsico arranca suspiros de nostalgia pelo período, 10 anos atrás, em que uma iniciativa pioneira abriu caminho para a solução pacífica do impasse nuclear iraniano. O acordo negociado em 2009 com Teerã pelo presidente Lula e pelo então premiê da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, não sobreviveu ao crivo do governo americano, mas assentou as bases para o acerto concluído em 2015 entre o Irã e um grupo de seis potências (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança (CS) da ONU mais a Alemanha). Na verdade, avaliam hoje os diplomatas, a fórmula negociada há 10 anos oferecia à comunidade internacional garantias mais seguras de que o Irã não desenvolveria armas atômicas.

Na ocasião, a iniciativa foi torpedeada pela então secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton. A despeito do aval dado por Barack Obama à gestão de Lula, a chefe da diplomacia americana entrou em campo no CS, assim que anunciado o acordo de Teerã, para costurar uma nova rodada de sanções à República Islâmica, passo que fechou o caminho para novas negociações. A retomada do processo se fez, como esperavam observadores de diferentes quadrantes, tendo 2009 como ponto de partida.

Dominó
No ambiente regional imediato do Oriente Médio, a recente escalada com o Irã aprofunda o fosso aberto entre Washington e a Turquia, aliado estratégico e parceiro na Otan, aliança militar ocidental. O descompasso com Erdogan, hoje presidente, vem de outra iniciativa americana em que prevaleceu o unilateralismo, em versão prévia e ligeiramente adocicada do lema ;America first; (América em primeiro lugar), carro-chefe da campanha de Trump em 2016. Em 2003, George W. Bush invadiu o Iraque para depor Saddam Hussein, com a desaprovação explícita da Europa e de outros parceiros.

Entre outras consequências, o movimento unilateral de Bush resultou na criação de um bolsão semi-independente da minoria curda no norte iraquiano, na fronteira com a Turquia ; que abriga o maior contingente de população da etnia e a maior porção do território reivindicado por ela. O desencontro se aprofundou, a partir de 2011, com a guerra civil na Síria e a proclamação de um califado pelo Estado Islâmico na fronteira sírio-iraquiana. A ofensiva para desalojar os jihadistas, tendo os combatentes peshmerga do Curdistão como força principal, só fez aumentar o mal-estar de Erdogan com os EUA ; e teve como desdobramento a articulação de um novo eixo regional entre Turquia, Irã e Rússia.

General deserto
Foi, por sinal, outra ação unilateral contra o Irã dos aiatolás que ajudou a determinar o fiasco de Jimmy Carter na tentativa de se reeleger para a Casa Branca, em 1980, em meio ao impasse com o regime recém-instalado pela revolução islâmica de 1979. Desde o início avesso aos EUA, a quem chamava de ;Grande Satã;, o governo iraniano entrou em rota de colisão com Washington após a invasão da embaixada americana em Teerã por estudantes radicais, que tomaram dezenas de diplomatas como reféns. Carter arriscou uma operação de resgate, mas uma tempestade de areia no deserto derrubou os helicópteros enviados para a ação.

Com a ajuda do ;general deserto;, o Irã reservou a Carter a humilhação final de assistir à libertação dos cativos no mesmo dia em que deu posse a Ronald Reagan, que o derrotara nas urnas.