Com o país ainda na ressaca de uma sequência interminável de escândalos de corrupção, com os últimos cinco ex-presidentes acusados de irregularidades diversas, o Congresso do Peru começa a semana ensaiando os próximos passos da reforma política proposta pelo atual mandatário, Martín Vizcarra. Na última sexta-feira, a Comissão de Constituição aprovou o primeiro item da pauta, pelo qual fica proibido de disputar qualquer cargo eletivo um cidadão que tenha sido condenado em primeira instância por crime doloso. O presidente do Legislativo, Daniel Salaverry, decidiu postergar o recesso, que começaria no sábado, para dar seguimento aos debates e apressar a votação das mudanças no plenário.
O empurrão decisivo para a reforma política veio com a surpreendente vitória de Vizcarra no início do mês, quando conseguiu a aprovação de uma moção de confiança em seu governo para a tramitação do projeto. Vizcarra assumiu o cargo em março de 2018, após a renúncia de Pedro Pablo Kuczynski, um dos antecessores investigados na versão peruana da Operação Lava-Jato como beneficiário de propinas da construtora brasileira Odebrecht. Embora não pertença a nenhum partido e não tenha uma base parlamentar consolidada, o mandatário teve 77 votos favoráveis à moção, com 44 votos contrários.
Desde então, sua popularidade subiu oito pontos e chegou a 50% de aprovação, em pesquisa Ipsos para o jornal El Comercio, enquanto a reprovação caiu de 47% para 41%, no intervalo de quatro semanas. Para 61% dos entrevistados, o presidente é visto como um conciliador e um homem de diálogo.
Nos próximos dias, a Comissão de Constituição deve ouvir o principal articulador do projeto de Vizcarra, Fernando Tuesta, que preside a Comissão de Alto Nível para a Reforma Política, convocada pelo presidente para costurar as propostas e negociá-las com os deputados e senadores. ;É necessário que os congressistas possam informar-se melhor sobre o projeto em primeira mão;, disse à imprensa Tuesta, que ainda aguarda a convocação formal para assistir a uma audiência do grupo de trabalho parlamentar.
Entre as principais medidas que devem passar pela comissão, antes de seguir para o plenário, está aquela que é considerada crucial no esforço de romper com o ciclo de influência do poder econômico sobre a vida política do país. A nova lei sobre financiamento de campanhas, além de restringir fortemente as contribuições de empresas, prevê a supervisão da Justiça eleitoral sobre a contabilidade dos partidos. Outro item estabelece normas para a formação de partidos e organizações políticas, com a finalidade principal de coibir as ;legendas de aluguel;. Estão previstas mudanças também no sistema eleitoral e nos dispositivos que regem a imunidade dos parlamentares.
Lava-Jato
A arriscada aposta política de Vizcarra, herdeiro improvável do último da série de presidentes envolvidos em escândalos (leia abaixo), caminha passo a passo com a investigação sobre as propinas pagas pela Odebrecht a políticos nas últimas quatro eleições. Na terça-feira passada, o ex-governador da província de Ancash César Álvarez tornou-se o primeiro condenado pela Lava-Jato peruana. Em prisão preventiva desde 2014, por outros delitos, ele foi sentenciado a oito anos e três meses de prisão por ter feito pagamentos irregulares à empreiteira por obras de infraestrutura.
Talvez mais significativa tenha sido a decisão tomada no dia seguinte por outro tribunal, que rejeitou um pedido de habeas corpus em favor da ex-congressista Keiko Fujimori, líder do partido Força Popular, que detém a maior bancada no Legislativo. Keiko, 44 anos, é a filha mais velha do ex-presidente Alberto Fujimori, que governou por 10 anos e renunciou em 2000. Ela está desde 31 de outubro em um presídio feminino de Lima e tem prisão preventiva decretada por 36 meses. Derrotada por Kuczynski na eleição de 2016, ela responde à acusação de ter recebido US$ 1,2 milhão da Odebrecht na disputa anterior, em 2011, quando foi vencida por Ollanta Humala ; outro ex-líder processado pela Lava-Jato.
;O que está ficando visível (com as investigações) são as redes políticas de corrupção incrustadas nas mais altas esferas políticas do país;, analisa a cientista política peruana Karen López Tello. ;Existe um desconcerto generalizado na sociedade peruana com o que veio acontecendo nos últimos 25 anos;, constata a estudiosa. ;É preciso desvendar os mecanismos pelos quais a corrupção se infiltra nas instituições.;
"Existe um desconcerto generalizado na sociedade peruana com o que veio acontecendo nos últimos 25 anos;
Karen López Tello, cientista política peruana
Todos os processos dos ex-presidentes
Alberto Fujimori (1990-2000)
- Eleito presidente de maneira surpreendente, como estreante na política, construiu fama por ter fechado o Congresso, em 1992, e governado com poderes extraordinários para combater a guerrilha maoísta (comunista) do grupo Sendero Luminoso. No fim do segundo mandato, exilou-se no Japão depois que seu braço direito, Vladimiro Montesinos, foi preso por comprar votos para um projeto que permitiria a Fujimori disputar o terceiro mandato consecutivo. De volta ao país, foi condenado em 2009 por corrupção e por violações dos direitos humanos durante seu governo. Indultado em 2017, fruto de acordo feito pelo presidente Pedro Pablo Kuczinsky com a bancada fujimorista, para escapar de impeachment, teve o benefício anulado em outubro passado.
Alejandro Toledo (2001-2006)
- Primeiro presidente eleito de origem indígena, chegou ao palácio com o prestígio de ser detentor de título acadêmico em economia pela prestigiada Universidade de Harvard e a esperança de marcar um novo capítulo na história política do país, após a era Fujimori. Ensaiou o retorno ao poder em 2011, mas foi derrotado no primeiro turno e apoiou o militar nacionalista Ollanta Humala, que sairia vencedor no segundo turno. Retornou aos EUA em 2017, como professor visitante na Universidade de Harvard, pouco antes de ter a prisão preventiva decretada, sob a acusação de ter recebido até US$ 20 milhões da empreiteira brasileira Odebrecht, em troca de contratos públicos. A Justiça peruana pediu sua extradição aos EUA.
Alan García (1985-1990 e 2006-2011)
- Célebre por ter se tornado o presidente mais jovem eleito no Peru, em 1985, deixou o governo com o país na hiperinflação e a guerrilha maoísta assediando a capital. Retornou em 2006, com uma política econômica ortodoxa e determinado a priorizar a abertura ao capital externo, além do livre-comércio com os Estados Unidos. Fracassou, em 2011, na tentativa de obter mais um mandato, e saiu das urnas com apenas 6% dos votos. Investigado por receber dinheiro da Odebrecht, tornou-se a figura mais emblemática da Lava-Jato peruana em abril passado, quando se suicidou com um tiro na cabeça depois de receber em casa policiais que tinham um mandado de prisão preventiva.
Ollanta Humala (2011-2016)
- Eleito na segunda tentativa de conquistar a presidência, esse miilitar nacionalista começou a carreira política tendo como referência o então presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Fez um governo que se distanciou progressivamente do chavismo e passou a se espelhar no brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, mas deixou o governo impopular. Meses depois, foi citado por executivos da Odebrecht como beneficiário de ao menos US$ 3 milhões para a campanha vitoriosa de 2011. Em julho de 2017, teve a prisão decretada com a mulher, Nadine Heredia, acusada de cumplicidade nos favorecimentos à construtora e nas operações ilegais para encobrir o recebimento de propinas. Os dois foram libertados em abril de 2018, mas seguem investigados.
Pedro Pablo Kuczynski (2016-2018)
- Empresário de sucesso, lançou-se na política em 2011, usando como marca de campanha as iniciais de seu nome, PPK ; transformada na sigla do partido Peruanos Por el Kambio. Terceiro colocado no primeiro turno, com 18,5% dos votos, apoiou na segunda rodada Keiko Fujimori, que viria a ser derrotada por Ollanta Humala. Cinco anos mais tarde, se impôs a Keiko por estreita margem de votos e se elegeu presidente com maioria de oposição no Congresso. No fim de 2017, enfrentou um processo de impeachment motivado pelo pagamento de propinas da Odebrecht a empresas de sua propriedade. Derrotou a tentativa, mas no início de 2018 voltou a ser denunciado, desta vez por ter comprado votos da bancada fujimorista. Renunciou antes da abertura do processo.