As autoridades do Mali buscavam ontem encontrar possíveis sobreviventes e identificar os autores de um massacre que praticamente dizimou a população de um vilarejo na região de Sobane-Kou, no centro do país. Moradores, um político e um integrante das forças de segurança informaram a agência de notícias France-Presse (AFP) sobre ao menos 95 mortos entre os cerca de 300 habitantes do povoado, integrantes da etnia dogom. Dedicados tradicionalmente à agricultura de subsistência, os dogons mantêm conflitos com a etnia peul, seminômade e ligada à criação de animais. Os incidentes de violência se acentuam desde 2015, quando surgiu o grupo extremista islâmico de Amadou Koufa, um dos vários que atuam no país. Os peuls têm sido recrutados em grande número para a organização.
;Eram uns 50 homens fortemente armados, que chegaram por volta das 3h, em motos e picapes;, relatou à AFP um sobrevivente que se identificou como Amadou Togo. ;Primeiro, eles cercaram o vilarejo, depois partiram para o ataque. Quem tentava escapar era morto. Não pouparam ninguém: nem as muheres, nem as crianças, nem os velhos;, descreveu a testemunha. Uma fonte do governo mencionou ;terroristas; como suspeitos pela chacina e listou 19 moradores como desaparecidos. ;Até o momento, temos 95 civis mortos. Os corpos foram queimados, e continuamos à procura de outros.;
O prefeito da vizinha cidade de Bankass, Moulaye Guindo, disse à agência Reuters que os autores seriam do grupo étnico fulani, ao qual pertence a etnia peul. Os fulanis, majoritariamente muçulmanos, são acusados de manter ligações e fornecer efetivos para os grupos jihadistas que se multiplicam no Mali, assim como nos vizinhos Níger e Burkina Faso. Os líderes da comunidade, porém, acusam os dogons de atacá-los por meio de uma associação de autodefesa chamada Dan Na Ambassagou.
Degradação
Disputas entre os dois grupos por território e recursos naturais são antigos, mas se intensificam desde 2012, quando os primeiros movimentos extremistas se lançaram em uma insurgência no norte do país. A situação chegou a ameaçar a estabilidade do governo de Bamako, que passou a ter ajuda de tropas francesas e de uma missão da ONU. Embora um acordo de paz tenha sido assinado em 2015, com o propósito de isolar os jihadistas, amplas áreas do país seguem fora de controle do Exército e das forças estrangeiras.
Desde janeiro de 2018, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Mali (Minusma) documentou 91 violações dos direitos humanos cometidas por caçadores tradicionais contra civis peuls nas regiões de Mopti e de Ségou, com 488 mortos e 110 feridos. Por sua vez, grupos armados de autodefesa da comunidade peul cometeram 67 agressões contra a população civil na região de Mopti, no mesmo período, com 63 mortos e 19 feridos. Em 23 de março passado, em Ogossagou, perto da fronteira com Burkina Faso, 160 pessoas da etnia peul foram mortas, supostamente, por caçadores dogons. De acordo com o International Crisis Group, que monitora situações de conflito em escala global, o mês passado teve um número de incidentes quatro vezes superior ao registrado em maio de 2016 ; apesar do acordo político e da presença de tropas internacionais.
;Quem tentava escapar era morto. Não pouparam ninguém;
Amadou Togo, morador do povoado atacado na região de Sobane-Kou
551
Total de mortes contabilizadas pela ONU
em conflitos étnicos no Mali, desde janeiro de 2018
Análise da notícia
Terra fértil
para a jihad
; Silvio Queiroz
A geografia e a história ajudam a entender como Mali, Burkina Faso, Níger e outros países da região ; como a Nigéria, um pouco mais ao sul e com uma dinâmica própria de crise ; tornaram-se palco de violência étnico-religiosa crescente, nos últimos anos. Em comum, estão todos alinhados sobre uma área de transição entre o deserto do Saara e a África Subsaariana, a Faixa do Sael, palco de uma prolongada degradação ambiental. Do ponto de vista social e humano, são países que apresentam um padrão básico composto de grande fragmentação étnica, com o predomínio de muçulmanos ao norte e de minorias religiosas ao sul ; cristãos ou adeptos de cultos tradicionais.
As tensões locais, alimentadas e manipuladas no período colonial, mantiveram-se latentes nos jovens países independentes estabelecidos sobretudo a partir dos anos 1960, assim como em outras regiões africanas. Mas é a entrada do fator jihadista que vem contagiando o Mali, em especial com os desdobramentos da Primavera Árabe de 2011. A Líbia, mergulhada desde então em guerra civil e semianarquia, tornou-se semeadouro para diferentes grupos extremistas islâmicos, que encontraram caminhos abertos para ;exportar; a ideologia jihadista por países onde o mosaico étnico-religioso e a fragilidade das instituições de Estado se apresentam como campo fértil.