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Ditadura à espreita

Ameaça de guerra civil assombra país do leste da África. Recusa de generais em transferir o poder e massacre de manifestantes intensificam temores de regime militar, depois de Omar Bashir governar com mão-de-ferro por quase três décadas







Samahir Elmubarak, 28 anos, é uma sobrevivente. Na última segunda-feira, pouco depois do nascer do sol, milhares de integrantes da Força de Reação Rápida, versão organizada da milícia Janjawed, chegaram ao local onde a farmacêutica de 28 anos e outros sudaneses faziam um protesto, sentados, diante do quartel-general das Forças Armadas. Na agenda da manifestação, a exigência de transferência do poder aos civis por parte da junta militar que pôs fim a 29 anos de regime de Omar Bashir, em 11 de abril. ;Os milicianos vieram com bastões e mangueiras pretas de três direções diferentes. Muitos usavam espingardas. Enquanto éramos expulsos, vi muitos serem baleados e continuarem caindo. Outros foram açoitados com as mangueiras;, contou ao Correio. ;Fui a um hospital de campanha e presenciei muito sangue e muita gente ferida. Foi um modo brutal de lidar com as pessoas.; Pouco depois do incidente, o governo bloqueou a internet e esvaziou a área do protesto. Pelo menos 40 corpos foram retirados do Rio Nilo. O número de mortos é desconhecido: enquanto agências de notícias citam 101, testemunhas falam em 500. O massacre do último dia 3 reforçou o medo de que o Sudão retorne aos tempos de tirania.

Sob o comando do general Abdel Fatah Al-Burhan, o Conselho Militar de Transição do Sudão (TMC, pela sigla em inglês) se recusa a transferir o poder a autoridades civis. ;Enfrentamos uma transformação que ainda precisa ser completada. A expectativa por mudanças reais e pela ruptura do círculo vicioso de ditaduras é o que estamos determinados a alcançar;, disse Samahir. Apesar da violenta repressão, ela vê melhora desde a deposição de Bashir, principalmente no campo da liberdade de expressão. ;Não nos escondemos mais, somos capazes de nos levantar, no meio da rua, e expressar o que pensamos. Durante o regime de Bashir, a expressão política era um grande ;não;. Centenas eram mantidos nas prisões.;

Engenheiro civil em Omdurman (a 12km de Cartum), Aladdin Osman, 30 anos, admitiu que o TMC tem mostrado indisposição em levar a transição adiante, apesar de ter feito tal promessa. ;As pessoas não deixarão as ruas, em protestos pacíficos por todo o país, a menos que o Sudão esteja sob tutela de um governo civil. O povo do Sudão tem sido muito claro em relação a isso;, destacou. Para forçar os militares a abandonarem o poder, vários setores da sociedade chegaram a apelar para uma greve geral de 24 horas.

Por sua vez, a estudante universitária Dinan Alasad, 21, de Cartum, considera ;bastante real; o risco de uma nova ditadura. ;Eu espero que o TMC seguirá reprimindo os protestos. A Associação Sudanesa de Profissionais (SPA) conclamou uma desobediência civil até a cessão de poder. Acho que essa medida eventualmente forçará o TMC a entregar o poder ou a recomeçar uma negociação. A desobediência civil é nosso único farol de esperança;, afirmou. Dinan teme por mais mortes, ao lembrar que as milícias se espalham por toda a capital. ;Tenho fé em nossa capacidade de derrubar esse conselho militar, assim como fizemos com Bashir e com dois outros presidentes incompetentes antes dele.;

O analista político Engin ;zer, especialista em temas africanos pelo instituto Voice of Africa (em Moscou), ressalta que golpes militares e ditaduras não são um novo conceito para o Sudão. Segundo ele, o golpe contra Bashir foi resultado de um acordo entre Arábia Saudita, Emiradores Árabes Unidos, Egito e generais sudaneses rebelados. ;Para o povo do Sudão, não há grande diferença entre o regime de Omar Bashir e o novo governo militar. Os protestos começaram contra o aumento do preço do pão. Há mais demanda por comida do que por democracia em Cartum;, disse ao Correio, ao alertar que o Sudão pode ser arrastado para a guerra civil.

Na sexta-feira, o premiê da Etiópia, Abiy Ahmed, desembarcou na capital sudanesa e defendeu uma transição democrática ;rápida;. Ele esperava ressuscitar as negociações entre os generais e os líderes dos protestos, após a suspensão do Sudão por parte da União Africana. ;zer acredita que a mediação etíope não resultará em benefícios tangíveis e credita o problema real à economia sudanesa, bastante atrasada. ;Outras nações mais poderosas e ricas, como Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, continuarão a fornecer apoio financeiro e diplomático aos golpistas. Eles se certificarão de que haverá um prosseguimento do regime militar. Se houver eleições livres a curto prazo, esses países manobrarão para que a maioria dos candidatos venha das fileiras de ex-generais ou de suas marionetes.;






Palavra de especialista


Democracia secundária


;Nunca houve uma luta séria para instituir democracia real na África. Foi, e continua sendo, uma luta pelo controle das alavancas do Estado e de seus recursos econômicos. A África presenciou uma batalha anticolonialismo nos anos 1960, como resultado da disputa entre forças nativas contra poderes coloniais ocidentais. Durante esse período, a transição à independência não obteve uma democracia completa. Foi uma transferência de poder da autoridade colonial a governantes nativos, geralmente ditadores e autocratas, em muitos casos ideólogos quase socialistas ou revolucionários. Nesses países onde não há experiência de democracia, as demandas da população eram a sobrevivência e o desenvolvimento econômico. A democracia sempre foi meta secundária. Nos anos recentes, o regime autocrático e o caos se transformaram em um tipo de cultura política no continente. Eleições nem sempre são decisivas para mudar a natureza dos governos africanos. Temo que esse cenário ocorra no Sudão.;

Engin ;zer é analista político do instituto Voice of Africa, em Moscou


Vozes sudanesas
Samahir Elmubarak,
28 anos, farmacêutica, moradora de Cartum

;Ao longo dos últimos cinco meses, a revolução solidificou a determinação do povo sudanês por um governo civil. Depois de tudo o que aconteceu, não é aceitável para nós que não obtenhamos o nosso pretenso governo civil. Nós continuaremos nossa revolução pacífica até que nossas demandas legítimas sejam atendidas.;


Alladin Osman,
30 anos, engenheiro civil, morador de Omdurman

;A deposição de Omar Bashir foi o começo de uma mudança real no Sudão. Não temo um novo tirano no poder. Penso que nós, sudaneses, assimilamos a lição e não permitiremos que isso volte a ocorrer. Durante os 29 anos de regime de Bashir, a vida em meu país era problemática, tanto do ponto de vista econômico quanto em relação à segurança. Não havia liberdade de expressão.;


Dinan Alasad,
21 anos, estudante, moradora de Cartum

;Sou esperançosa em relação à capacidade de resiliência do povo sudanês e à competência de nossa juventude. Os jovens com menos de 30 anos formam 60% da população do meu país. Eles são insistentes sobre a chegada de um novo Sudão, onde possamos todos coexistir em dignidade e alcançar a prosperidade.;



Dallia Abdelmoniem,
44 anos, empresária, moradora de Cartum

;O medo foi verdadeiramente rompido. Não podemos mais voltar atrás. Eu não sei o que está diante de nós, mas espero e rezo para que as coisas melhorem. Não podemos retroceder para o velho sistema. Todas essas mortes de inocentes não serão em vão. Nós lutaremos por eles e pelas futuras gerações.;