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Aborto entra na campanha

Pela oitava vez, o Congresso da Argentina recebe projeto de lei sobre a legalização da interrupção da gravidez. Movimento feminista pretende colocar tema na agenda e apresentar candidatos nas eleições de 27 de outubro. Ativistas tomam as ruas do país


Todos os anos, segundo ativistas, cerca de 500 mil argentinas recorrem ao aborto clandestino; em média, 10% são hospitalizadas após o procedimento. Milhares de argentinas tomaram as ruas das principais cidades, ontem, em um movimento chamado de ;pañuelazo; ; em alusão aos lenços de cor verde ostentados pelas ativistas que defendem a legalização da interrupção voluntária da gravidez. No Dia Internacional pela Saúde das Mulheres, o Congresso foi apresentado a um projeto de lei voltado à descriminalização do aborto. De acordo com o jornal Clarín, o texto reúne as assinaturas de 70 congressistas de todos os partidos políticos.

Os parlamentares debateram o tema em 2018, pressionados pelas manifestações multitudinárias organizadas pelas feministas. O texto passou pela Câmara dos Deputados, por 129 a 125 votos, e o Senado o rejeitou depois por 38 a 31. A apresentação da nova norma marca a inserção do aborto na campanha política. A Argentina vai às urnas em 27 de outubro para escolher o próximo presidente, além de 130 deputados e de 24 senadores.

Os movimentos feministas apostam todas a fichas na renovação de um terço do Senado, rompendo com a resistência da casa. ;O projeto de lei foi apresentado pela oitava vez no Congresso. Não sabemos quando será debatido de novo. Isso depende da vontade política e da pressão que geraremos;, afirmou ao Correio Victoria Tesoriero, líder da Campanha pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito e uma das ativistas que participaram da redação do texto. ;O projeto busca legalizar o aborto para que toda mulher que desejar interromper uma gravidez possa fazê-lo até a 14; semana de gestação. Para isso, ela terá a garantia do sistema de saúde;, acrescentou.

Mortes
A atual legislação, em vigor desde 1921, permite o aborto somente quando a vida da mulher está em perigo ou quando ela foi vítima de estupro, sem especificar as semanas de gestação. O novo projeto de lei não inclui a objeção de consciência para profissionais de saúde ; neste caso, a faculdade de realizar o aborto por princípios morais, éticos ou religiosos. Em média, 50 mulheres morrem a cada ano ao abortarem. ;São mortes evitáveis;, destacou a dirigente da campanha.

Para Victoria, o aborto legalizado é um tema de justiça social. ;Há casos graves, nos quais não se respeita a lei. A rede de profissionais que garantem a interrupção da gravidez não para de crescer e de somar mais médicos;, comentou. ;É muito diferente se você tem de abortar. As opções são distintas, a depender de sua classe social, uma variável fundamental de desigualdade, que impacta fortamente o acesso aos direitos.; A ativista assegura que o seu movimento pressionará o fechamento das listas para a inclusão de mulheres adeptas do aborto. ;Também vamos pedir aos jornalistas que questionem sobre o aborto aos candidatos. A composição do novo Congresso depende do avanço do aborto legal;, disse. Victoria disse que o próximo governo será forçado a debater o assunto. ;Não poderá fugir, pois a pressão de um movimento é demasiadamente forte;, lembrou.

No fim da tarde de ontem, em Buenos Aires, centenas de pessoas, em sua maioria mulheres jovens vestidas de verde, protestaram diante da sede do Legislativo. Atos similares foram registrados em mais de 100 cidades do país. ;Cada um tem que poder decidir com responsabilidade. Abortar não é fácil, tem que haver uma legislação que permita fazê-lo dignamente;, comentou à agência France-Presse Noelia Patruno, guia turística de 40 anos, em uma manifestação dos lenços verdes. De acordo com Mariela Bielski, diretora da Anistia Internacional na Argentina, ;os abortos continuam sendo praticados em péssimas condições, e as mulheres morrem em contextos de clandestinidade;.

Uma das signatárias do projeto de lei apresentado ontem, a deputada esquerdista Victoria Donda exigiu que os candidatos nas eleições de outubro ;esclareçam sua postura; em relação ao tema. ;O aborto não é ;piantavotos; (espanta eleitores), é uma questão de saúde pública;, opinou. Enquanto o presidente Mauricio Macri, que tentará a reeleição, foi o primeiro líder a incentivar o debate no Congresso, apesar de se pronunciar ;a favor da vida;, a ex-presidente e senadora Cristina Kirchner se recusou a colocar a pauta em discussão. No entanto, no ano passado, ela votou a favor. Por sua vez, o companheiro de chapa, Alberto Fernández, candidato à Casa Rosada pelo peronismo de esquerda, se posicionou a favor da despenalização da interrupção da gravidez, embora sem avançar no processo de legalização.


Mobilização nas
redes sociais



A imagem do lenço verde se espalhou pelas redes sociais e foi usada para convocar os argentinos às ruas. Amarrado ao punho ou colocado sobre a cabeça, o adorno se tornou símbolo da campanha a favor da legalização do aborto. No Twitter, ativistas publicaram os desenhos e fotos dos preparativos para os protestos de ontem, além de frases de impacto. ;A mulher decide, a sociedade respeita, o Estado garante e a Igreja não se mete;, afirma uma delas. ;28 de maio. Aborto legal, seguro e gratuito. Que seja lei;, estampa outra imagem.



50
Número de mulheres mortas durante a interrupção
da gravidez ; 50 mil são hospitalizadas após o procedimento mal realizado



Três perguntas para


Victoria Tesoriero, líder da Campanha pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito

Por que o Senado resiste em aprovar a legalização do aborto?
O Senado está divorciado da sociedade. Hoje, o tema do aborto é a dívida da democracia. Há um movimento que se posicionou como o movimento social mais importante do país, que reclama esse direito. As novas gerações estão majoritariamente a favor da interrupção voluntária da gravidez. A campanha é a aliança transversal em busca de um direito mais amplo na história do movimento feminista na Argentina. Nunca nos separamos, apesar das diferenças. Nossa campanha nasce e cresce mais em cada encontro de mulheres.

Como a questão da interrupção da gravidez deve surgir na campanha eleitoral?
Nós acreditamos que todos os candidatos e candidatas devem se pronunciar sobre o tema. Pessoalmente, creio que haja uma relação entre o ciclo político e o ciclo social dos movimentos. Com as políticas do governo atual, o movimento conseguiu se apoiar na bandeira contra o ajuste e a precarização e contra os cortes orçamentários de nossas políticas. Existe um clima mais permeável com a agenda de gênero. E o aborto é uma dívida pendente.

De que forma analisa a mobilização popular em torno do tema?
A magnitude da mobilização foi incrível e surpreendeu a nós mesmas. Isso abalou estruturas, fez com que todo mundo tivesse de se pronunciar sobre o aborto. Também mudou a percepção da opinião pública e das instituições sobre o movimento feminista e a importância da agenda. (RC)