Será que um jornal realmente precisa de um especialista em questões de gênero? A "gender editor" do New York Times explica em uma entrevista à AFP que se o movimento #MeToo causou uma "mudança cultural", ela ainda tem tarefas a cumprir antes do seu trabalho se tornar inútil.
"Num mundo ideal, não deveria haver especialista em questões de gênero. Mas isso não vai acontecer tão cedo", diz Jessica Bennett, de 36 anos, de passagem por Paris para dar conferências.
A jornalista foi contratada pelo New York Times no final de 2017, poucos dias antes da caso Harvey Weinstein. Desde então, com o movimento #MeToo, Jessica Bennett constatou uma profunda mudança cultural: assédio, violência sexual e questões de igualdade entraram em cena, especialmente no trabalho, no entretenimento e mídia.
"É quase engraçado ver como as mulheres se tornaram interessantes", ironiza Jessica Bennett. "Hoje esse tipo de artigo está em alta demanda, enquanto há cinco anos teríamos que implorar (aos jornais) para publicá-los".
"Parte do meu trabalho, que consiste em trazer à tona essas questões de gênero, foi acelerado porque o tema está em cada conversa atualmente", ressalta Jessica Bennett, autora em 2016 de um "Manual de Sobrevivência em Ambiente Sexista".
Ela construiu gradualmente o cargo de editora Gender, sem precedentes na imprensa mainstream, trazendo uma sensibilidade feminista a um veículo tradicional, evitando, porém, uma escrita ofensiva.
Dia a dia, Jessica Bennett monitora a igualdade de tratamento com base no gênero baseando-se em números: quantos artigos são sobre mulheres no jornal? Quantas especialistas falam? Quantas leitoras veem suas cartas publicadas? Estes números melhoraram, até certo ponto, no "Times".
20% de obituários de mulheres
"Sobretudo, eu não queria ser a pessoa que desenbarcou e disse a toda redação que ela estava errada. Ou apontar na produção cotidiana do jornal o que poderia ter sido feito melhor", diz Bennett.
"Eu faço isso de qualquer maneira, às vezes, mas temos ambições mais amplas: queremos envolver mais nossas leitoras. O New York Times sabe que não vai sobreviver se não atrair e manter as jovens leitoras", explica.
Como fazer isso? Corrigindo erros do passado, analisando e refinando a cobertura de notícias diariamente. Um grande erro foi atribuído ao "Times": o jornal publicou apenas 20% dos obituários de mulheres em sua história secular. Desde o início de 2018, o jornal publica novos obituários de personalidades que não tiveram direito a uma linha, porque não eram homens ou porque não eram brancas.
Entre as personalidades mais recentes apresentadas neste projeto de sucesso chamado "Overlooked" (negligenciadas): a poetisa Sylvia Plath (1932-1963), a jornalista afro-americana Ida B. Wells (1862-1931), ou uma lenda de Bollywood, Madhubala (1933-1969).
Uma série documental baseada no projeto está em desenvolvimento, escrita e filmada por mulheres. "Pode ter havido homens mais famosos porque eles tinham mais poder", ressalta Bennett. "Sem estabelecer cotas, também podemos escolher não escrever sobre todos os mortos e traçar perfis de mulheres que não conhecíamos. Tivemos falhas e é importante reconhecê-las. Não é complicado, já que tanto mulheres quanto homens morrem".
A jornalista também continua a escrever artigos, reivindicando um ponto de vista em que "a cultura pop encontra o feminismo".
Ela cobriu com um novo olhar o concurso de beleza Miss América, ou as reivindicações de igualdade salarial das líderes de torcida do futebol americano. Para atingir um público jovem e feminino, o jornal também lançou um boletim informativo dedicado a essas questões e uma conta no Instagram, com atualmente quase 100.000 inscritos.