Rodrigo Craveiro
postado em 06/10/2018 07:00
Era uma manhã de sexta-feira normal em Bukavu, no leste da República Democrática do Congo. Denis Mukwege realizava mais uma das 50 mil cirurgias em vítimas de estupro. A 10,6 mil quilômetros dali, em Oslo, o Comitê Nobel Norueguês anunciava que o médico ginecologista de 63 anos e Nadia Murad, 25, ativista iraquiana da etnia yazidi e ex-escrava sexual do Estado Islâmico (EI), dividiriam o Prêmio Nobel da Paz ;por seus esforços para colocar fim ao uso da violência sexual como arma de guerra e em conflitos armados;. ;Nós começamos a celebrar. O doutor Mukwege terminou o seu trabalho e, cerca de meia hora depois, se uniu a nós na comemoração;, contou ao Correio Prince Kwamiso, funcionário da Fundação Panzi, afiliada ao Hospital Panzi, mantido pelo médico que ganhou o apelido de ;o homem que conserta mulheres;.
Nadia evitou a mídia e dedicou a distinção à mãe, por meio de um comunicado. ;Eu penso em minha mãe, que foi assassinada pelo Daesh (acrônimo em árabe para Estado Islâmico), e nas crianças com quem eu cresci. (;) Eu me sinto incrivelmente honrada e humilde. Compartilho este prêmio com os yazidis, os iraquianos, os curdos e outras minorias perseguidas, e com incontáveis vítimas da violência sexual em todo o mundo;, declarou.
Por sua vez, Mukwege homenageou as vítimas. ;Meus pensamentos imediatamente se voltam a todos os sobreviventes de estupro e de violência sexual em zonas de conflito pelo mundo. (;) Essa honraria é uma inspiração, pois mostra que o mundo está prestando atenção à tragédia do estupro e da violência sexual e que as mulheres e crianças que sofreram por tanto tempo não estão sendo ignoradas;, comentou. ;O Prêmio Nobel reflete este reconhecimento do sofrimento e da necessidade por reparações justas às vítimas. (;) Eu o dedico às mulheres de todos os países do mundo, prejudicadas por conflitos e enfrentando a violência diária.;
Berit Reiss-Andersen, presidente do Comitê Nobel Norueguês, lembrou que ;Denis Mukwege e Nadia Murad arriscaram as vidas lutando corajosamente contra crimes de guerra e pedindo justiça para as vítimas;. Em nota, o Comitê destacou que ;Denis Mukwege é o símbolo mais importante e unificador, tanto nacional quanto internacionalmente, da luta para acabar com a violência sexual na guerra e nos conflitos armados;. ;Seu princípio é o de que a justiça diz respeito a todos;, afirmou. ;Nadia Murad é uma vítima dos crimes de guerra. Ela se recusou a aceitar os códigos sociais que exigem que as mulheres permaneçam em silêncio e com vergonha dos abusos. Ela demonstrou coragem incomum ao relatar seus próprios sofrimentos e ao falar em nome de outras vítimas;, acrescentou.
Dignidade
Desde 1999, passaram pelo Hospital Panzi, em Bukavu, mais de 50 mil sobreviventes de estupro e de violência sexual, e 80 mil garotas e mulheres com lesões ginecológicas complexas. Prince Kwamiso acredita que, com o Nobel, ;a voz dos sem voz foi ouvida;. ;O doutor Mukwege tem falado por muitas mulheres em nosso país, onde o estupro tem sido usado como arma de guerra. Além de denunciar os crimes, ele tem usado o tempo, a energia e o conhecimento para curar e restaurar a dignidade das congolesas;.
A história de Nadia Murad se confunde com as de 6.400 yazidis, sequestrados pelo EI em agosto de 2014. A laureada com o Nobel da Paz vivia com a família no remoto vilarejo de Kocho, na província de Sinjar, norte do Iraque. Ela foi capturada com cerca de 3 mil garotas e mulheres, transformada em escrava sexual e repetidamente estuprada. Três meses depois, fugiu. ;Nós, yazidis, perdemos quase 10 mil pessoas no genocídio. Milhares foram sepultados em covas coletivas. Cerca de 3.200 ainda estão em poder do EI. Por isso, precisamos de pessoas inspiradas e corajosas como Nadia para ajudar a reconstruir o que o Estado Islâmico devastou e para ser uma voz para povos perseguidos e esquecidos, como o meu;, disse ao Correio Murad Hamu, 31 anos, um yazidi que vive no campo iraquiano de deslocados de Khanke.
Hamu relata que, em 3 de agosto de 2014, os extremistas chegaram a uma cidade vizinha ao vilarejo onde vivia e mataram homens e jovens. ;Eles sequestraram as mulheres e muitas meninas. Fomos avisados por um informante de que o EI estava a caminho e fugimos a pé. Em nossa comunidade, 803 pessoas foram executadas. Buscamos refúgio nas montanhas, onde não havia nada para comer ou beber. Nos dois primeiros dias, dezenas de crianças, idosos e doentes morreram. Nove dias depois, andamos por 15 horas até a fronteira da Síria, com a ajuda de guerrilheiros curdos e yazidis;, contou. ;Nadia é nossa voz para devolver o nosso sorriso e garantir um retorno seguro às nossa cidades.;
Do horror brotou música
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;Dentro de mim um pequeno presidente está escondido/que mudaria todas as desigualdades./ Dentro de mim um pequeno advogado está oculto/que defenderá todos os oprimidos./ E se eu não o fizer/você poderia mudar o mundo para mim?; A congolesa Sandra (acima), 21 anos, foi infectada com o vírus HIV durante um estupro, em 2013. Desde então, tornou-se paciente do médico Denis Mukwege, no Hospital Panzi, em Bukavu, na República Democrática do Congo. Com a ajuda do produtor canadense Darcy Ataman (à esquerda, com Mukwege) ela gravou o álbum Mon corps n;est pas une arme (;Meu corpo não é uma arma;), cuja canção principal, de mesmo nome, tem os versos acima. ;Estive no Hospital Panzi por 26 vezes, onde criei um programa de musicoterapia inspirado pelo doutor Mukwege. Eu o conheço há anos. É um ser humano absolutamente altruísta, que busca sua força na resiliência das mulheres congolesas. Ele trabalha por 16 horas diárias mantendo energia e entusiasmo para seguir na luta contra o estupro como arma de guerra;, afirmou Ataman ao Correio, por telefone, de Winnipeg. Para ele, o Nobel da Paz lança luz sobre a impunidade do estupro como arma de guerra. ;Também mostra que as sobreviventes não estão tão isoladas quanto imaginam. O caminho até a cura é longo;, comentou. O produtor gravou oito álbuns, que contaram com a participação de 2.500 pacientes de Mukwege. ;Todas as músicas foram compostas por elas;, relatou. (RC)
Do Iraque ao Congo
;O Nobel da Paz para Nadia Murad é o reconhecimento a um espírito de amor e de paz, e à defesa de povos perseguidos. Também é um dia histórico para o meu povo, de quem o mundo tomará conhecimento da existência.;
Murad Hamu, 31 anos, yazidi nascido em Sinjar (Iraque). Vive no campo de deslocados de Khanke, em Duhok (Iraque)
;O doutor Denis Mukwege é a alma verdadeira que foi enviada ao mundo em um tempo como este, a fim de trazer esperança aos desesperados e derramar uma luz sobre aquelas que foram submetidas a viver em meio à escuridão do medo.;
Prince Kwamiso, 35 anos, funcionário congolês da Fundação Panzi (em Bukavu), mantida por Mukwege
Repercussão
António Guterres, secretário-geral da ONU
;A violência sexual no conflito é uma ameaça à paz e uma mancha na nossa humanidade. Ainda permanece generalizada. Minhas congratulações aos nossos parceiros da ONU Denis Mukwege e Nadia Murad pelo Prêmio Nobel. Nós continuaremos a apoiar seus esforços corajosos.;
Barham Salih, presidente do Iraque
;É o reconhecimento da situação trágica dos yazidis, além de um reconhecimento à sua coragem em defender os direitos humanos de vítimas do terror e da violência sexual. Uma honra a todos iraquianos que combateram o terrorismo e o fanatismo.;
Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu
;Tenho o mais profundo respeito pela coragem, a compaixão e a humanidade dos dois vencedores.;
Jens Stoltenberg, secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan)
;Obrigado por seus esforços para fazer brilhar a luz e acabar com um dos crimes mais sombrios: a violência sexual como arma de guerra.;
Steffen Seibert, porta-voz da chanceler alemã, Angela Merkel
;São dois excelentes laureados que lançam um grito de humanidade em meio a horrores inimagináveis.;
Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para os Direitos Humanos
;É um reconhecimento amplamente merecido para esses dois defensores extraordinariamente corajosos, perseverantes e eficazes contra a violência sexual e o uso do estupro como arma de guerra.;