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Sacerdote brasileiro conta sobre rotina de atender à minoria cristã em Gaza

Padre Mário da Silva: "Gaza é a maior prisão a céu aberto"


Cerca de 1,9 milhão de pessoas, muçulmanas na maioria, travam uma luta diária por sobrevivência na Faixa de Gaza, um dos locais mais pobres e violentos do mundo. Além da miséria, do desemprego e das condições insalubres, enfrentam o medo dos tiros e das bombas disparadas por forças israelenses no interminável conflito com o Hamas ; o movimento islâmico que governa o território palestino desde 2007.

Com as fronteiras terrestres, marítimas e aéreas do enclave palestino controladas por Israel, a população é proibida de sair. ;É por esse motivo que dizemos que Gaza é a maior prisão a céu aberto do mundo;, disse, em entrevista ao Correio, o padre brasileiro Mário da Silva, 39 anos. Desde 2012, ele está à frente da Paróquia da Sagrada Família, refúgio para os 980 cristãos que vivem em Gaza ; 138 católicos e 842 ortodoxos.

Embora desenvolva projetos sociais tanto para cristãos quanto para muçulmanos, o sacerdote brasileiro admite o medo da violência, e revela ter sido alvo de agressões pelo fato de liderar uma minoria religiosa. ;Muitas foram as situações difíceis em meus seis anos aqui, como quando entraram na igreja, atearam fogo ao meu carro e colocaram uma bomba em frente ao templo, que foi todo pichado;, recorda Silva.

O padre Mário, nasceu no Piauí, em 13 de abril de 1979. Em São Paulo, teve contato com a diocese de Santo Amaro, que passou a ser sua nova casa e o lugar onde cresceria. Hoje, pertence ao Instituto do Verbo Encarnado, congregação religiosa fundada na Argentina, em 1984, pelo padre Carlos Miguel Buela.

;Temos como desejo do nosso fundador querer ir aos lugares difíceis, onde nem todos os sacerdotes querem ir. Por isso, a presença sacerdotal é escassa;, explica Silva, ordenado em 7 de setembro de 2005 e enviado para a Argentina, a Itália e, por fim, o Brasil. Foi durante um novo trabalho na Itália que ele se ofereceu para missionar na Terra Santa, na Paróquia da Sagrada Família de Gaza, o que se concretizaria em 2012.

Além dos ataques israelenses contra palestinos, como são as condições de vida em Gaza? Quais as dificuldades enfrentadas pela população no dia a dia?
Todas as pessoas que vivem na Faixa de Gaza sofrem um bloqueio terrestre, marítimo e aéreo. O que significa isso? As pessoas não podem deixar o território nem por automóvel (ou qualquer veículo terrestre), nem por barcos, nem por avião. E não apenas isso: as mercadorias não podem entrar aqui sem permissão especial, assim como as pessoas são impedidas de entrar na cidade sem permissão especial. É por esse motivo que dizemos que Gaza é a maior prisão a céu aberto do mundo. A maior dificuldade que encontramos é a falta de liberdade para ir e vir.

Como é a qualidade dos serviços disponíveis à população?
Esse grande bloqueio traz consigo outras grandes dificuldades. Por exemplo: temos somente 3 ou 4 horas de eletricidade por dia. Tudo que entra aqui deve ter permissão. A água fornecida à população escasseia e, quando chega, não é potável. Segundo um estudo da ONU, 90% da água da Faixa de Gaza é contaminada pelo esgoto ou pela água do mar: a água que se bebe deve ser comprada, mas nem todos têm dinheiro para isso.

E o saneamento?
A situação de limpeza da cidade é muito precária. O governo não pode oferecer um sistema de saneamento para a população, o que se vê, principalmente, na sujeira à qual está submetida a cidade, e também pelo fato de estar proibido se banhar no mar, porque todo o esgoto desce diretamente para a praia, sem tratamento.
Qual o índice de desemprego?
Em Gaza vivem 1,9 milhão de habitantes em 365km;, e 45% da população não tem trabalho, o que os faz viver numa situação de miséria muito grande.

Desde sua chegada, em 2012, o número de cristãos caiu de 4.500 para mil. Como eles abandonam a região?
Os cristãos têm permissão especial para visitar Jerusalém na Páscoa e no Natal. A permissão não é dada para toda a família, só para alguns membros, para que se garanta o retorno dos que saem. Mas muitos ficam em Jerusalém e Belém ou saem do país. Se a permissão fosse dada para toda a família, estaríamos com muito menos cristãos aqui.

Como é o trabalho social em Gaza?
A Igreja faz muitos projetos sociais, como dar trabalho a mais de 30 jovens que terminaram a universidade e não encontram futuro. Damos cestas básicas às pessoas mais necessitadas, famílias cristãs e muçulmanas. No ano passado, fizemos um projeto para dar energia solar a mais de 35 casas. Já construímos três casas para pessoas que não tinham teto. Neste ano, inauguramos um centro de estudos onde os jovens podem aprender inglês, computação, administração de projetos e o mais importante: teologia básica para defender a fé cristã. Além disso, oferecemos bolsas de estudos para crianças e estudantes universitários.

O senhor chegou a Gaza em 2012. De lá para cá, as condições de vida melhoraram ou pioraram?
Quando cheguei, vi uma situação muito precária e uma vida muito difícil, mas uma esperança me motivava a trabalhar mais, baseado no fato de que, normalmente, todas as coisas melhoram na nossa vida. Porém, de lá para cá, só vi as coisas piorarem. Quando cheguei, tínhamos mais de oito horas de eletricidade, os cristãos tinham a possibilidade de visitar os lugares santos, as mercadorias essenciais eram mais baratas, pois vinham do Egito. Quando cheguei, fazia dois dias que a guerra de 2012 tinha terminado, uma guerra de oito dias que destruíra a cidade. Dois anos depois, tivemos outra guerra, de 54 dias, que destruiu bairros inteiros. Foi realmente terrível.

Nos últimos meses, houve nova onda de violência na fronteira entre Gaza e Israel. Os efeitos são sentidos pelo senhor e pela paróquia?
As manifestações dos palestinos de Gaza são fruto do desespero. Além disso, é prometida uma ajuda econômica às famílias das pessoas que morrem ou são feridas nas manifestações, o que faz com que elas se sacrifiquem. São dias de muito desespero para os nossos paroquianos, dias de incerteza política, de medo, dias em que se suspendem ou cancelam as atividades da paróquia.

Qual o maior perigo que o senhor já sentiu durante esses anos?
O medo aqui passa a ser parte da vida. Sempre, durante a guerra, telefonamos aos paroquianos e perguntamos como estão. A resposta comum é aadi abouna, ou ;normal, padre;. O medo passa a ser normal. Muitas foram as situações difíceis em meus seis anos aqui, como quando entraram na igreja, atearam fogo ao meu carro e colocaram uma bomba em frente ao templo, que foi todo pichado. Mas a situação mais difícil foi a experiência da última guerra, em 2014.

Como foram o Natal e a Páscoa em Gaza, diante de tantas restrições para o deslocamento das pessoas?
Praticamente não festejamos o Natal e a Páscoa. Fizemos as celebrações mínimas e necessárias para cumprir com os preceitos cristãos, mas não pudemos fazer mais que isso, pela incerteza política e pelo medo.

Qual a relação entre o senhor, a paróquia, os fiéis e o papa Francisco?
Ele nos é muito próximo. Nos momentos mais difíceis, escreveu mensagens ou mandou um lindo presente, uma imagem de Nossa Senhora de Luján. Ele sempre se mostrou muito atento às necessidades da paróquia, inclusive com ajuda material. Ainda hoje me lembro de quando estive em Roma e o vi de longe, pois havia muitas pessoas. Gritei: ;Reze por Gaza!’ E ele, ao escutar esse nome, me perguntou se eu estava missionando lá. Ao dar uma resposta positiva, ele pediu que se abrisse caminho para que eu pudesse ir até ele, me cumprimentou e perguntou como estava a situação.

O senhor vislumbra alguma chance de reconciliação entre Israel e os palestinos?
Infelizmente, não vemos luz no fim do túnel; não se veem trabalhos concretos nem passos para uma futura reconciliação. Pensamos que somente Deus pode mudar os corações desse povo, para que vivam em paz.

Por que o senhor decidiu ir para Gaza?
Quando ainda estudava em Roma, me destinaram para ir trabalhar na diocese de Santo Amaro, em São Paulo. Antes de ir para lá, pedi para fazer uma peregrinação à Terra Santa. Era 2009, e estavam destruindo a Cidade de Gaza na guerra daquele ano. Soube que tinham pedido à minha cngregação sacerdotes para substituir o padre que estava ali. Então, sabendo que a nossa congregação (Instituto do Verbo Encarnado) prefere ir a lugares difíceis, perguntaram se poderíamos enviar um ou dois sacerdotes. Enviamos um e estávamos esperando enviar outro. Foi então que me ofereci. Esperei dois anos, mas em 2012 me enviaram. Cheguei durante a guerra e tive que esperar, porque as fronteiras estavam fechadas.