Pela primeira vez desde a dissolução da União Soviética, em 1991, duas potências militares revivem o temor de um conflito nuclear. A hipótese de confronto de proporções inimagináveis ganhou força no último dia 13, depois que os Estados Unidos comandaram uma coalizão, formada por França e Reino Unido, e responderam com uma ofensiva cirúrgica ao suposto ataque químico ocorrido em Douma, na região de Ghouta Oriental, seis dias antes. O contexto político da troca de ameaças ressaltou a nova ;Guerra Fria; entre a Casa Branca e o Kremlin ; este último, aliado do regime sírio de Bashar Al-Assad. De um lado, Donald Trump, um líder impulsivo e capaz de tuítes nada diplomáticos. Do outro, Vladimir Putin, um presidente calculista e ávido em recuperar o poderio minado pelo colapso da União Soviética. No meio, um conflito civil que deixou mais de meio milhão de mortos.
[FOTO2]
;Nossa relação com a Rússia é pior agora do que nunca, e isso inclui a Guerra Fria. Não há razão para isto. A Rússia precisa de nós para ajudarmos com a sua economia, algo que seria muito fácil de fazer, e nós precisamos que todas as nações trabalhem juntas;, afirmou Trump, por meio do Twitter, cerca de 48 horas antes dos bombardeios à Síria. O republicano tinha usado o mesmo ambiente para provocar a Rússia, principal inimigo dos EUA entre 1947 e 1991 (leia o Para Saber mais). ;A Rússia promete derrubar quaisquer e todos os mísseis disparados na Síria. Esteja pronta, Rússia, pois eles estarão vindo, bons, novos e ;inteligentes;! Vocês não deveriam ser parceiros de um animal assassino!”, escreveu. Dois dias depois, Trump cumpriu a promessa e Moscou não revidou. O republicano advertiu o Kremlin a não apoiar um ;ditador assassino;.
Putin alertou que considerava ;essencial evitar qualquer ação irrefletida e perigosa, (;) que teria consequências imprevisíveis;. ;O estado atual do mundo nos dá apenas motivos para nos preocuparmos. A situação do mundo está se tornando caótica;, advertiu. Depois dos bombardeios liderados pelos EUA, a Rússia não conseguiu aprovar resolução na ONU condenando a ofensiva militar contra Al-Assad.
A crise envolvendo a participação do Kremlin na guerra civil síria é mais um elemento desestabilizador entre Moscou e o Ocidente (veja arte). Nas últimas duas décadas, intervenções da Otan no Kosovo, a adesão de ex-repúblicas soviéticas à aliança atlântica, a ofensiva russa contra a Geórgia e a anexação da península ucraniana da Crimeia por parte da Rússia evidenciaram o mal-estar de ambos os lados. Moscou teria interferido nas eleições americanas de 2016 e envenenado o ex-espião russo Serguei Skripal, em 4 de março passado, no Reino Unido.
Bipolaridade
Chefe do Programa de Política Doméstica Russa do Carnegie Endowment for International Peace (Moscou), Lilia Shevtsova admitiu ao Correio que a Rússia e os EUA estão em uma etapa de confrontação que lembra a Guerra Fria. ;É verdade que, ao menos por enquanto, não existe ameaça de conflito nuclear. A Rússia não tem recursos suficientes para lutar pela bipolaridade;, afirmou. No entanto, a especialista adverte que um fator torna o atual confronto assustador: os antigos tabus e os instrumentos de controle não funcionam. ;Ambos os países se engajaram em uma roleta russa. Por quê? A razão está no modo de sobrevivência do Kremlin e na forma com que os EUA projetam a sua dominação;, disse.
Shevtsova crê que nem a Rússia nem os EUA gostariam de se mover para além do recrudescimento de tensões na Síria. ;Apenas 19% dos russos pensam que a meta da política externa deveria ser a contenção dos Estados Unidos. O problema é que não estou certa se Putin sabe como descer da árvore.;
Ex-embaixador americano no Azerbaijão e na Bósnia e Herzegovina, Richard Kauzlarich classifica a crise entre EUA e Rússia de ;ruim; e acusa o líder russo de optar pelo confronto na Ucrânia e na Síria, além de intervir nas eleições de 2016. ;As ameaças de Putin de fortalecimento do arsenal nuclear têm preocupado a todos. A última rodada de sanções dos EUA danificou as autoridades próximas ao Kremlin;, afirmou o também professor da Faculdade de Política e Governo da George Mason University, na Virgínia.
Ele explicou que, ao contrário da antiga Guerra Fria, o novo contexto é desprovido de conteúdo ideológico. ;Se esta é uma nova Guerra Fria, ela tem muitas das características da Velha Guerra, como a ameaça de uso de aeronaves, o ruído das armas nucleares e a dura retórica. Putin considera o colapso da União Soviética como a maior catástrofe do século 20. Ele tenta reverter as perdas da Rússia e os ganhos do Ocidente;, comentou. Kauzlarich concorda com Shevstova sobre a imprevisibilidade da escalada. ;Uma coisa está clara: o risco de conflito, seja ele intencional ou acidental, é alto. Há poucos caminhos abertos para reduzir as tensões.;
Opaq coletou amostras na Síria
Investigadores internacionais entraram, ontem, na cidade síria de Douma e coletaram amostras, duas semanas depois do suposto ataque químico no local ; o qual teria deixado pelo menos 40 mortos.
Os inspetores desembarcaram na Síria no último sábado, mas não conseguiram entrar no ex-reduto rebelde. Uma equipe de segurança da ONU chegou a ser alvo de disparos.