Jorge Vasconcelos
postado em 26/02/2018 06:00
A notícia de que várias empresas cancelaram parcerias com a Associação Nacional de Rifles (NRA, na sigla em inglês) revelou apenas um lado da ação do lobby das armas nos Estados Unidos, presente também em campanhas eleitorais. Entre outros alvos estratégicos, ele atua em 300 escolas e universidades com a promoção de treinos de pontaria, competições de tiro e distribuição de bolsas de estudo. A ação ocorre, inclusive, em instituições marcadas por tiroteios em massa, como a Universidade Estadual da Virgínia (Virginia Tech), palco do maior massacre em um estabelecimento de ensino do país. Em 16 de abril de 2007, um estudante treinado com armas matou 32 pessoas antes de cometer suicídio.
O extenso grupo de parceiros da NRA, que inclui o presidente Donald Trump e grande parte da classe política, começou a diminuir na semana passada. O fenômeno é consequência de uma onda de protestos após o último da longa série de ataques a tiros em instituições de ensino: no último dia 14, Nikolas Cruz, 19 anos, expulso por indisciplina da Marjory Stoneman Douglas High School, em Parkland (Flórida), entrou no local e abriu fogo, causando a morte de 17 pessoas. Para a matança, utilizou um fuzil AR-15 comprado sem qualquer restrição. Uma mobilização de sobreviventes contra o acesso a armas ganha força nas redes sociais, e grandes empresas romperam laços com a associação, incluindo a Delta Air Lines, a Unite Airlines e a seguradora Metlife, que concediam descontos e outras vantagens a associados.
A ação do lobby das armas junto aos estudantes, as maiores vítimas dos tiroteios, é feita por meio dos Collegiate Shooting Programs (;Programas Colegiais de Tiro;) ; uma parceria entre a NRA e os estabelecimentos de ensino. Através dela, os alunos da Virginia Tech, por exemplo, têm acesso às seguintes ;disciplinas;, segundo o site da NRA: espingarda; tiro esportivo; armadilhas para caça; e skeet, esporte em que um alvo de argila é lançado para simular o voo de um pássaro.
Por sua vez, a Universidade de Auburn, no estado do Alabama, oferece aos alunos o Reserve Officer Training Corps (;Treinamento para o Corpo de Oficial da Reserva;, ROTC), pelo qual os interessados podem se tornar militares do Exército no posto de segundo-tenente. ;O ROTC dá aos estudantes universitários/cadetes a capacidade de experimentar o Exército, mantendo a vida normal da faculdade;, informa o site da NRA ao detalhar o curso, que oferece bolsas de estudo de até US$ 20 mil anuais (ou R$ 66 mil) para custos educacionais. Também são concedidos U$ 900 (cerca de R$ 2.970) por ano para livros, além de um salário mensal.
A Universidade de Auburn é outra que foi cenário de um tiroteio mortífero nos Estados Unidos. Na noite de 9 de junho de 2012, três estudantes, dois deles do time de futebol americano, foram mortos em uma residência universitária. Outros dois ficaram feridos. O autor dos disparos se entregou à polícia dias depois. O crime estava relacionado a uma briga ocorrida dias antes em uma festa.
Entre os 300 estabelecimentos de ensino parceiros dos Programas Colegiais de Tiro está também a Universidade de Austin, no Texas, onde, segundo o site da NRA, são oferecidos aos alunos treinamentos com rifle e pistola, além da prática de tiro esportivo, formação militar (ROTC) e disparos em estande fechado. A universidade também guarda, na história, a marca de um massacre a tiros. Em agosto de 1966, um de seus estudantes, de 25 anos, assassinou a mãe e a mulher e, em seguida, executou 14 pessoas na universidade. Ele só parou de atirar ao ser abatido por dois policiais.
Competições
O site da NRA informa que, em março, haverá quatro competições intercolegiais de tiro. A próxima ocorrerá entre os dias 17 e 20, em Fort Benning, unidade do Exército situada no estado da Geórgia. Diante das críticas à disseminação da cultura de armas nos Estados Unidos, Wayne LaPierre, chefe da NRA, negou que ela traga insegurança ao país e responsabilizou o Partido Democrata por estar atrás da onda de manifestações. Segundo ele, os democratas pretendem impor uma agenda ;socialista; e explorar as mortes, em um esforço para ;destruir; a Segunda Emenda da Constituição, a qual dá à população o direito de se armar como forma de proteção.
Um dos sobreviventes do massacre de Parkland, o estudante brasiliense Gustavo Cruz Carvalho, de 18 anos, defendeu a continuidade dos protestos para que as cenas dramáticas testemunhadas por ele na escola não voltem a acontecer. ;Nós não estamos querendo acabar com o tal direito de o americano ter sua arma para se proteger. Nosso pedido é simplesmente para que se tenha um controle, para que uma pessoa com problemas mentais, por exemplo, não possa comprar uma arma;, disse Gustavo ao Correio (leia o Depoimento).
Um professor americano, que pediu para ser identificado apenas como Alexander, também é a favor de mais manifestações por um maior controle na venda de armas nos Estados Unidos. Ele vive há três anos no Rio de Janeiro, onde leciona inglês. ;Essa pressão é muito importante. A situação nos Estados Unidos precisa mudar, porque os tiroteios estão ocorrendo cada vez com maior frequência. Estamos todos vendo os tristes resultados da disseminação da cultura das armas, principalmente entre os jovens, que são os autores mais frequentes dos tiroteios e, ao mesmo tempo, as maiores vítimas;, disse à reportagem.
Depoimento
Luta contra o esquecimento
;Nós estamos fazendo o máximo para que as mortes de Parkland não caiam no esquecimento. A cada massacre, as autoridades dizem que não é hora de falar sobre controle de armas, que é o momento de enviar orações às famílias. Não! Foi assim que tentaram fazer que muitos casos caíssem no esquecimento. A gente tem que seguir falando, a gente tem que protestar com força. Se a gente descansar por um segundo, o tiroteio de Parkland cairá no esquecimento.
Nós não estamos querendo acabar com o tal direito do americano de ter sua arma para se proteger. Nosso pedido é simplesmente para que se tenha controle, para que alguém com problemas mentais, por exemplo, não possa comprar uma arma. Como foi o caso do Nikolas (Cruz), que tem uma mente totalmente destruída, como tinha sido diagnosticado. É triste, muito triste ver que, depois de uma tragédia dessas, eles (políticos) ainda estão tentando fazer que a gente não lute por isso. Mas a gente vai lutar.;
Gustavo Cruz Carvalho, 18 anos, brasiliense, é sobrevivente do tiroteio na Marjory Stoneman Douglas High School, em Parkland