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Presidente da Mães da Praça de Maio é proibida de deixar a Argentina

Intimada a depor sobre desvio de verbas, ativista histórica recebeu apoio da multidão

Rodrigo Craveiro
postado em 05/08/2016 06:00
Hebe de Bonafini acena com otimismo ao deixar a Praça de Maio, após discursar:

;Eles querem nos fazer desaparecer. (;) Se eles têm que me meter presa, que me metam. Minha vida já não vale nada, tenho 90 anos.; Assim Hebe de Bonafini, fundadora e presidente da organização não governamental argentina Asociación Madres de Plaza de Mayo (;Associação Mães da Praça de Maio;), reagiu à ordem de detenção expedida pelo juiz Marcelo Martínez de Giorgi, após ela se negar a comparecer ao tribunal para depor sobre suposto desvio de recursos públicos. A ativista também está proibida de sair da Argentina.

No fim da tarde, cercada por simpatizantes kirchneristas e depois de fugir em uma van da sede da entidade, Bonafini participou de ato de resistência e enviou um recado ao presidente: ;Macri, contenha a mão. Isso é o que as Mães queremos ; o povo nas ruas, mobilizado e feliz. Estamos felizes por estarmos nas ruas, por não termos medo. Agradeço a todos os que se mobilizaram. Não fiquemos tristes, aflitos, calados nem quietos. A mobilização dos povos é o que libera;, declarou, segundo o Clarín. ;Vamos seguir nessa posição inabalável de que não seguirão avançando contra nós. Então, Macri, contenha a mão;, concluiu, em referência ao autoritarismo. ;Poderão nos prender, mas não poderão prender o pensamento.;

;Queriam revistar a sede das Mães, Hebe foi para a Praça (de Maio). Eles (policiais federais) a buscavam com a força pública! É escandaloso, a direita neoliberal não tem limites;, afirmou ao Correio Karina Funes, funcionária da ONG, enquanto participava de uma reunião de emergência com os colegas. De acordo com o diário La Nación, Giorgi pretendia que Bonafini passasse a noite na cadeia e fosse obrigada a depor na manhã de hoje ante o próprio juiz. No entanto, o jornal argentino Página 12 publicou que o magistrado decidiu postergar a captura e deixar que as forças de segurança tomem a iniciativa ;em momento oportuno;.

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A notícia sobre a ordem de detenção provocou alvoroço e comoção na capital e em outras cidades da Argentina. Uma multidão saiu às ruas para demonstrar apoio a Bonafini. Nas redes sociais , mensagens de solidariedade e fotos foram replicadas com as hashtags #TodosALaPlaza e #TodosConHebe. Na manifestação em Buenos Aires, vários dirigentes kirchneristas acompanharam Bonafini, entre eles o ex-vice-presidente Amado Boudou; os deputados Andrés Larroque e Mayra Mendoza; o sindicalista Luis D;Elía; e o ex-ministro da Economia e parlamentar Axel Kicillof.

Protestos em apoio à ativista foram registrados em outras cidades da Argentina. ;Se tocam em Hebe ou em qualquer uma das mães, estão tocando na memória de nossos 30 mil desaparecidos;, disse ao Correio uma moradora de Avellaneda que não quis ter o nome revelado.

Símbolo
Leandro Morgenfeld, professor de história argentina da Universidade de Buenos Aires, lembrou ao Correio que Hebe de Bonafini ;é um símbolo da luta contra a ditadura e pelos direitos humanos;. ;Por isso, tanta gente se mobilizou contra a detenção;, explica. Ele contou que, às 20h (hora de Brasília), estava previsto um grande panelaço, na capital portenha, contra o aumento das tarifas de gás, de energia elétrica e de água, aprovado pelo governo. ;Cada vez que o presidente Mauricio Macri tentou reprimir protestos, ele se deu mal. Em fevereiro, as autoridades trataram de aplicar um protocolo para regulamentar os piquetes e as marchas. No entanto, não conseguiram aplicá-lo.;

O advogado e militante peronista Aníbal Fernández usou as redes sociais para divulgar um vídeo que fez de Hebe dentro da van, enquanto a multidão cercava o carro. ;Quando vejo isso, eu vejo meus filhos. Há um fogo que não se apagou. (;) Duas mil mães são necessárias para se apagar essa chama. E eles não a alcançam. (;) O povo está sempre alegre e com vontade de lutar e de sair às ruas. Isso me dá muita alegria, força e segurança;, disse, visivelmente emocionada.


Programa social milionário

O juiz Marcelo Martínez de Giorgi investiga irregularidades durante a construção de moradias sociais do programa Sonhos Compartilhados das Mães da Praça de Maio. O plano contou com a injeção de capital do Estado durante os governos de Néstor e de Cristina Kirchner (2003/2015). O empreendimento, que construía milhares de casas, escolas e centros médicos em bairros carentes, foi interrompido em 2011, após denúncias de corrupção. Ao menos US$ 170 milhões foram movimentados pelo programa.

Carta de desabafo ao juiz

Em mensagem enviada ontem ao juiz Marcelo Martínez de Giorgi, Hebe de Bonafini denunciou um ;calvário; que enfrentou ante a Justiça. ;Desde 1977, mais precisamente em 8 de fevereiro daquele ano, venho padecendo das agressões da mal chamada Justiça, implementada pelos juízes da nação. Nesse momento, começou meu calvário, fiz 168 apresentações por meu filho Jorge; depois, em conjunto, reclamei por meu outro filho Raúl, que desapareceu em dezembro do mesmo ano. (;) Em maio de 1978, desapareceu minha nora Maria Elena, nada mudou;, escreveu. ;Sempre a mesma ignomínia, a mesma indiferença, eu sentia como a denominada Justiça era cúmplice dos assassinos militares e da Marinha (;) Outra vez sofremos na própria carne a pilhéria, que nos castiga a todas, idosas de 85 a 90 anos, e nos condena a pagar as dívidas, injustas e estranhas.; Na carta, Bonafini avisa que as mães sempre vão ;defender os valores da solidariedade social, estender aos mãos aos vulneráveis. (;) E vamos lutar para que, alguma vez, nos enfrentemos com juízes probos, que nos ajudem a sentir, em nossos corpos, o valor da Justiça;.

Décadas de lutas

A história de Hebe de Bonafini se confunde com a da Associação Mães da Praça de Maio, criada em 30 de abril de 1977. A mulher, que perdeu os dois filhos ; Raúl e Jorge ; e a nora para as mãos da ditadura militar, se reuniu com outras mães ao redor da Pirâmide de Maio, o monumento principal da Praça de Maio, em Buenos Aires. Na tentativa de evitarem a prisão e ante o estado de sítio que proibia reuniões de três ou mais pessoas, ela e as outras mães começaram a caminhar em dupla, de braços dados, sempre às sextas-feiras.

Para serem reconhecidas, as Mães da Praça de Maio passaram a utilizar um lenço branco sobre a cabeça, que acabou se tornando um símbolo da luta. O grupo ganhou projeção internacional e, com o fim do regime militar, cresceu de forma exponencial, após a adesão de pais, irmãos, mulheres, filhos e netos de desaparecidos e de presos políticos. Movimentos similares surgiram pelo interior da Argentina.

Desde 1981, as Mães da Praça de Maio tomavam frente das Marchas da Resistência, manifestações contrárias ao governo e em favor dos direitos humanos. Em 26 de janeiro de 2006, três anos depois de Néstor Kirchner ascender ao poder, a entidade deixou de participar desses atos. Na ocasião, Bonafini disse que ;não há um inimigo na Casa de Governo;.

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