Seul ; Quando se olha para a coreana de 39 anos, aparência bem mais jovem, rosto caprichosamente maquiado, estatura baixa e fala firme, não se imagina que YuMi Lee carregue consigo os horrores vivenciados do outro lado da fronteira. Ainda que tenha buscado escapar deles por 11vezes. A primeira delas entre janeiro e fevereiro de 2001; a última, e bem-sucedida, três anos depois. YuMi nasceu e viveu por 27 anos na cidade de Hyesan, situada na província de Ryanggang, no extremo norte da Coreia do Norte, no limite com a China. Durante vários anos, ela atuou na linha de frente do endoutrinamento de crianças e jovens. Ajudou a incutir nas mentes dos norte-coreanos as façanhas de Kim Jong-il, pai do atual ditador, Kim Jong-un. Em entrevista ao Correio, YuMi revelou detalhes de como o regime comunista se impõe sobre a população e relatou ter visto várias execuções públicas em Hyesan. Ao ser questionada sobre as possibilidades de reunificação entre as Coreias do Norte e do Sul, ela se mostrou cética e citou o doutrinamento dos norte-coreanos como o principal entrave. Há 12 anos, YuMi Lee vive em Seul, onde trabalha como vendedoras de carros.
Como funcionava o trabalho de doutrinamento na Coreia do Norte?
Eu tinha a função de doutrinar os norte-coreanos com as façanhas que a revolução de Kim Il-sung e seu filho, Kim Jong-il, conseguiram realizar no Estado. Isso incluía desde as crianças pequenas até as mais velhas. Basicamente, eu era responsável por essa atividade com todos os residentes do norte do país.
Era uma espécie de lavagem cerebral a favor do regime?
O que eu fazia, basicamente, era dar aulas sobre as conquistas de Kim Il-sung e do filho, durante a época em que Kim Il-sung era um partisan ; membro de tropa irregular ; contrário aos movimentos militares do Japão. Nessa época, atuava a maior parte do tempo na província de Ryanggang, onde eu vivia. Eu pegava as pessoas e as educava. Entre outras coisas, mostrava-lhes a ponte onde Kim Il-sung lutou durante as manobras japonesas, disparando contra os inimigos. Nos locais onde havia marcas de tiros e buracos nas paredes, eu ensinava que ali Kim Il-sung participara de combates.
Como percebeu que o regime norte-coreano não lhe fazia bem?
Durante a época em que Kim Il-sung era vivo, eu não percebia que o sistema estava errado. Isso porque eu tinha recebido educação, e Kim prometera um país onde não seria necessário pagar impostos, onde as pessoas não morreriam de fome e teriam uma vida sustentável. Com a morte dele, ocorreu a chamada ;grande fome;. Nesse período, houve muito contrabando de produtos estrangeiros. Eu sempre acreditava que os produtos norte-coreanos eram bons. Quando recebi essas mercadorias, percebi que até mesmo a China ; então, o país não era desenvolvido ; fabricava objetos melhores do que nós. Ao me deparar com produtos eletrônicos japoneses, constatei que o mundo externo estava se saindo bem. Isso rompeu a minha fantasia com relação à Coreia do Norte. Eu também pensava que eles eram livres para fazer o que quisessem e que viviam em um ambiente onde poderiam obter esses produtos de qualidade. Foi um tempo de despertar, isso me tornou mais curiosa para conhecer além de nosso sistema.
Quais ferramentas a Coreia do Norte usa para impor o medo e o controle sobre os cidadãos?
É óbvio que a primeira medida para controlar as mentes são as execuções por fuzilamento. Este é o medo mais fundamental, o terror psicológico, que o regime norte-coreano instila na população. Além disso, quando dizemos algo errado sobre a liderança do país, mesmo que para um desconhecido, eles nos enviam a campos de prisioneiros políticos. Ali, fazem com que os presos trabalhem na lavoura para a própria subsistência, mas não lhes fornecem quaisquer ferramentas para tanto. Então, eles são obrigados a cavar a terra com as próprias mãos. Nesses campos, as pessoas são tratadas como animais, vivem numa condição inferior à humana. Eles têm a cidadania banida e são forçados a realizar trabalhos que não desejam fazer até o resto de suas vidas.
Mas a senhora chegou a testemunhar execuções públicas?
O mais devastador em relação à execução pública está no fato de que os soldados norte-coreanos forçam todos os membros da família a assistir à morte do parente. Nos dias em que ocorrem as execuções, tudo é horroroso. Eles dispensam as crianças da escola. Todos são convocados ao local público da execução para verem o que pode ocorrer se cometerem traição contra o país. Os familiares não podem chorar nem mostrar qualquer tipo de emoção. Caso contrário, também são acusados de traição à pátria. Os executados são amarrados a uma estaca no solo. O pelotão de fuzilamento conta com três atiradores. Cada um deles dispara contra a cabeça, o peito e as pernas do sentenciado. Quando acertam a cabeça, ela explode. Depois, atiram contra o peito e as pernas. É uma visão horrível. Depois que morrem, são colocados em sacos e enterrados em local desconhecido. Nem mesmo a família do prisioneiro fica sabendo do local do sepultamento. Eu não posso contar quantas vezes assisti às execuções. Eles já faziam isso antes da ;grande fome;. Depois dela, algumas vezes se vê 12 ou 13 pessoas serem executadas de uma vez.
Durante as fugas, a senhora se dispôs a pagar um alto preço pela liberdade, ainda que ela lhe custasse a vida?
Eu tentei desertar por 11 vezes. Durante 10 vezes, fui repatriada. A razão pela qual consegui fugir tantas vezes está no fato de que, na fronteira com a China, se você tem dinheiro, consegue comprar qualquer coisa. É diferente de Pyongyang, de onde é mais difícil de sair. Os norte-coreanos têm uma lei segundo a qual os repatriados têm que ser enviados aos campos de prisioneiros políticos. Isso não funcionava na região fronteiriça com a China. O que importava era o dinheiro. Acho que sobrevivi porque eu era muito boa em fugir. Na nona tentativa de fuga, eu quis morrer, pois acabei sendo repatriada para a Coreia do Norte. Tudo estava na minha cabeça. Eu conhecia pessoas na China que poderiam me colocar dentro da Coreia do Sul. Minha motivação era abandonar a insanidade do Norte.
A senhora sofreu abusos sexuais de traficantes humanos e de soldados norte-coreanos?
O que fizeram comigo foi me despir e fazer com que eu pulasse mais de mil vezes para que qualquer dinheiro escondido caísse no chão. Eu conheço uma mulher que sofreu abusos sexuais. Eu sofri tortura. Os soldados norte-coreanos me faziam ficar de joelhos. Se eu me movesse um milímetro, me golpeavam com qualquer objeto à vista. Podia ser uma barra de ferro ou um bastão.
Depois de sofrer tantas transgressões aos direitos humanos, a senhora acredita na reunificação das Coréias?
A reunificação não vai ocorrer imediatamente. O tempo para que o Norte e o Sul construíssem boas relações e se unificassem já passou. Há muitos temas diplomáticos nas mãos de China, Estados Unidos e atores terceiros envolvidos nesse processo. Mesmo que as Coreias queiram se unificar, isso será um problema. Estamos divididos há sete décadas e, durante esse tempo, os cidadãos norte-coreanos foram doutrinados mais e mais. É como se existisse um túmulo em seus cérebros. Em caso de unificação, teremos de resolver essa questão, antes de falarmos em economia unificada. Essas pessoas foram doutrinadas pela vida toda, a fim de exporem lealdade aos dirigentes. Levará tempo para mudar suas mentes. No âmbito cultural, a unificação deve trazer problemas. Isso porque, na Coreia do Norte, as pessoas sobrevivem dia a dia. Elas não saberiam usar o dinheiro que temos na Coreia do Sul. Também teriam dificuldades em se adaptar à agricultura, pois tudo o que plantam é para consumo próprio. Se quisermos ser unificados, precisamos pensar em todas as conseqüências. Haverá um conflito muito violento.
É bem provável que a senhora nunca mais veja sua família. Esta é a pior parte de ser um desertor?
Essa é a pior parte para os desertores. No meu caso, o meu pai faleceu e minha mãe conseguiu desertar para o Sul. Uma das maiores traições cometidas contra a Coreia do Norte está no fato de sair em defesa dos direitos humanos ou abordar assuntos políticos, em meios públicos. Um desertor sente culpa o bastante por viver em meio a privilégios que outros norte-coreanos não têm. Se ele tem familiares na Coreia do Norte, o fardo é três vezes maior.
O repórter viajou a convite da TV Arirang