A surpreendente vitória apertada do governista Daniel Scioli, em 25 de outubro passado, até então favorito absoluto pelas pesquisas, injetou suspense no segundo turno das eleições na Argentina, que ocorre pela primeira vez. Por volta das 23h30 deste domingo (hora de Brasília), o país deverá conhecer seu próximo presidente. Na primeira rodada da disputa eleitoral, Scioli, candidato da Frente para la Victoria (FPV), obteve 9.338.449 votos (35,85%), enquanto Mauricio Macri, opositor da aliança Cambiemos e do partido Propuesta Republicana (PRO), conseguiu 8.601.063 (33,02%). A diferença de pouco mais de dois pontos percentuais não se reflete nas sondagens recentes, em que Macri desponta como o mais provável a ocupar o sillón de Rivadávia, como é conhecida a cadeira presencial na Casa Rosada. No entanto, os institutos de pesquisa indicam um crescimento de Scioli para o balotaje, termo utilizado no país em referência ao segundo turno.
;O que está em jogo é um voto bastante volátil, que pode se dividir entre uma opção próxima ao peronismo e o apoio definitivo à oposição. As eleições deste ano mostram que votos não mais pertencem aos dirigentes políticos e que o eleitorado está em mutação;, admite a cientista política Maria Cecilia Míguez, professora da Universidade de Buenos Aires (UBA) e autora de Partidos políticos e política exterior argentina.
Assim que repassar a faixa presidencial ao sucessor, daqui a 18 dias, Cristina Fernández de Kirchner e a sua herança política serão lançadas no limbo da incerteza. Analistas consultados pelo Estado de Minas divergem sobre o futuro do kirchnerismo e sua capacidade de se manter como expressão genuína da política argentina, depois de 12 anos à frente da Casa Rosada.
;Em caso de vitória ou derrota do opositor Mauricio Macri, o kirchnerismo enfrentará um panorama difícil. Ele não contará com o poder presidencial nem com os recursos do governo nacional, além de concentrar uma parte reduzida das bancadas do Congresso. Com o passar do tempo, o poder de Cristina vai se diluir;, aposta Miguel De Luca, cientista político da Universidade de Buenos Aires (UBA). ;O kirchnerismo pode desaparecer, assim como ocorreu com o menemismo (referência ao ex-presidente Carlos Menem). Sem o poder presencial, sem recursos do governo nacional e sem força no parlamento, ele terá dificuldades para manter a liderança dentro do peronismo.;
Doutor em ciências sociais, cientista político e autor de Ideologia y Democracia: Intelectuales, partidos políticos y representación partidaria en Argentina y Brasil desde 1980 al 2003, Amílcar Salas Oroño pensa diferente e lembra que um setor substancial da sociedade tem respaldado os kirchneristas desde a chegada de Néstor Kirchner à presidência, em 2003. ;Muito dificilmente se pode pensar na desagregação do espaço político kirchnerista, o qual soma centrais sindicais, o apoio de intelectuais nas universidades, de câmaras empresariais, de organizações da sociedade civil, de setores majoritários da juventude e de representantes da classe artística. Há uma série de identidades fortemente referenciadas no kirchnerismo;, explica.
Segundo Oroño, o kirchnerismo representa um eixo divisor das referências políticas na Argentina ; não somente na campanha eleitoral, mas também no imaginário coletivo ; em questões-chave, como a defesa do trabalho, da causa nacional e da importância dos direitos dos cidadãos. ;Não são aspectos secundários, mas valores cruciais para a sociedade argentina. Por isso, podemos dizer que o kirchnerismo ainda será referência política intensa para além da eleição;, prevê.
CONQUISTAS SOCIAIS Maria Cecilia Míguez tem a mesma linha de raciocínio. De acordo com ela, o kirchnerismo é uma força política consolidada e, ao contrário de alinhamentos em função de lideranças momentâneas, representa a renovação de uma tradição histórica do peronismo. ;Sua existência permitiu ao justicialismo se recompor do que o menemismo tinha significado como um golpe à sua identidade política;, observa. Ela descarta que a sobrevivência do kirchnerismo estará em jogo hoje e cita as conquistas sociais encampadas pela gestão de Cristina, como o aumento dos salários e as subvenções tarifárias. ;Macri enfrentaria resistência do peronismo a medidas que atentarem contra esses avanços. Mesmo sem Cristina, o movimento kirchnerista deve recobrar força própria e construir uma agenda política, enquanto organização.;