A Anistia Internacional divulgou hoje (18) um relatório de 60 páginas sobre casos de tortura na Nigéria. De acordo com a entidade de direitos humanos, é rotina no país africano a tortura de mulheres, homens e até crianças por policias e militares, que utilizam métodos como espancamento, tiros e estupro.
O relatório é o segundo de uma série de cinco que a entidade prepara dentro da campanha global contra a tortura. No começo do mês foi divulgado relatório sobre o México e ao longo deste ano e de 2015 também serão divulgadas as análises da entidade sobre o Marrocos, as Filipinas e o Uzbequistão.
O documento Bem-Vindo ao Inferno de Fogo: Torturas e Outros Maus-Tratos na Nigéria (do inglês Welcome to Hell Fire: Torture and Other Ill-Treatment in Nigeria) traz casos levantados entre 2007 e 2014 e aponta que frequentemente pessoas são detidas em grandes operações e sofrem torturas com o objetivo de extorquir dinheiro ou extrair confissões, muitas vezes com acusações falsas ou mesmo sem acusação formal.
O cientista político e assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional Brasil, Maurício Santoro, explica que a preocupação é com as consequências da perseguição do governo da Nigéria ao grupo extremista armado Boko Haram, que ;tem cometido atentados e atrocidades;, como o rapto de 20 mulheres em junho, mas ;evidentemente que a gravidade que o Boko Haram representa não pode ser uma carta branca para que a tortura seja empreendida no combate a ele;, alerta.
Desde 2009, entre 5 mil e 10 mil pessoas foram presas na Nigéria por suspeita de ligação com o grupo. A Anistia Internacional registrou desde 2007 cerca de 500 casos de tortura e a morte de 80 pessoas sob detenção, ;possivelmente a maior parte delas em decorrência de tortura;, segundo Santoro. Os detidos não têm acesso a advogados, familiares ou tribunais e são submetidos a técnicas como extração de unha ou dente, asfixia, choque, violência sexual e espancamento. As vítimas também relatam práticas do tipo: ficar penduradas pelos braços e pernas, assistir à execução de outros presos, ter álcool e plástico derretido derramado sobre o corpo e rolar sobre garrafas quebradas.
As equipes da Anistia Internacional entrevistaram sobreviventes da tortura, seus parentes, advogados e policiais. Santoro afirma que a tortura é uma prática muito comum no país africano. ;A gente está focando nessa questão do terrorismo, mas tem muitos casos que envolvem crimes comuns como roubo, adolescentes suspeitos de cometerem crimes, então é uma prática muito disseminada na sociedade nigeriana e que envolve desde questões políticas até suspeitas de crimes cotidianos;.
Ele lembra que a prática da tortura é inaceitável em qualquer circunstância e há 30 anos é considerada crime contra a humanidade, ou seja, não prescreve e não pode ser anistiado, como consta na Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura, de 1984.
;São problemas que a gente vê em países como o Brasil. Uma vez que as pessoas acabam aceitando o uso da tortura, às vezes achando que isso vai ser uma maneira de combater o crime, abre-se na verdade uma porta para a total erosão do Estado de Direito. O policial que tortura, o agente de estado que tortura, vai acabar usando isso também para benefícios pessoais, para a extorsão, tentativa de se apoderar dos bens das suas vítimas, como aconteceu no Brasil, como acontece ainda;.
Para Santoro, apesar de o Brasil ainda ter relatos graves de tortura, o país tem dado passos positivos, com a criação das comissões da verdade, ;que estão fazendo um trabalho muito importante para a investigação da tortura durante a ditadura, mas também para a sua persistência nos dias de hoje, inclusive com uma estrutura de segurança pública que é um legado da ditadura, um legado extremamente sombrio, extremamente sangrento e que continua a afetar a vida dos brasileiros cotidianamente;.
Outro desdobramento positivo, segundo o assessor, foi a instalação, em julho deste ano, do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, uma obrigação que o Brasil tinha assumido em 2007 na ONU, que vai ;possibilitar agora maior transparência, maior capacidade de cobrança, de prestação de contas com relação às ocorrências de tortura;, destaca Santoro.
No relatório sobre a Nigéria, a Anistia Internacional recomenda uma mudança na lei nigeriana, que ainda não tem a tipificação do crime de tortura, ;então ela acaba sendo investigada como lesão corporal, como abuso de autoridade, o que não tem a mesma força;, explica o assessor. Também foi recomendada a criação de um mecanismo independente do governo para monitorar a polícia e investigar as denúncias de tortura e a supervisão do poder judiciário. ;Quando o preso fica muito tempo sem ver um juiz, meses, às vezes anos, denunciar a tortura se torna praticamente impossível e a impunidade aumenta;.
Para a Anistia Internacional, é urgente que a Nigéria aprove uma lei para criminalizar a tortura e punir os culpados. Atualmente, não há investigação sobre os atos, muito menos responsabilização da cadeia de comando. Das centenas de vítimas identificadas, nenhuma foi compensada ou recebeu reparação do governo. O governo da Nigéria criou cinco comissões presidenciais e grupos de trabalho para analisar a reforma do sistema de Justiça criminal e erradicar a tortura, mas as recomendações não saíram do papel.