Bento XVI conseguiu o que queria. Um ano depois de surpreender o mundo com o anúncio da primeira renúncia de um pontífice em 600 anos, lançando luz sobre os pecados da Cúria Romana, o teólogo alemão, que desde 2005 ocupava o cargo máximo da Igreja Católica desceu do presbitério, tirou o anel de pescador e a mitra, saiu dos holofotes e conquistou uma vida de silêncio e de oração no anonimato. Só não escapou de se tornar o principal conselheiro do papa Francisco, seu sucessor.
Era uma manhã de segunda-feira de carnaval no Brasil, 11 de fevereiro, quando a notícia, ainda truncada, começou a chegar do Vaticano. Falando baixo, e em latim, durante reunião com cardeais, Joseph Ratzinger, aos 85 anos, afirmou ;não ter mais forças; para continuar exercendo as obrigações do cargo. Sem que quase ninguém tivesse entendido o teor do comentário, ele emendou estar ;totalmente consciente; da gravidade da decisão.
A Igreja vivia ; e ainda vive, apesar da leveza imposta por Francisco ; tempos difíceis, com purpurados envolvidos em escândalos de pedofilia; o Banco do Vaticano mergulhado em denúncias de corrupção; a sombra do ;lobby gay; e do Vatileaks; e uma ferrenha disputa interna por poder na cúpula do catolicismo, religião de 1,2 bilhão de pessoas em todo o mundo. ;Ele não aguentou aquela corja e pediu para sair;, diz um padre que por 10 anos morou em Roma, com trânsito livre no Vaticano.
Bastante tímido, Bento XVI não conseguia se impor diante das intrigas que se intensificavam. Quem conhece a dinâmica da Cúria sabe que o agora papa emérito andava sendo manipulado por assessores próximos. ;Foi um ato corajoso. Covardia seria se empurrasse com a barriga ou jogasse tudo para debaixo do tapete. Ele tinha consciência da gravidade dos problemas e percebeu que não tinha mais força política;, comenta padre Geraldo de Mori, um dos diretores da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), em Belo Horizonte.
Passado um ano da inusitada renúncia, fica mais fácil compreender por que Bento XVI abriu mão do cargo máximo da Igreja Católica. O aparente sucesso de Francisco como bispo de Roma ; ao reaproximar a instituição dos fiéis e, sobretudo, ao pregar e agir para moralizar a Cúria ; é a grande alegria (e o alívio) do alemão. ;O gesto dele virou algo profético. Bento XVI deve vibrar ao ver o sucessor pegando o boi pelo chifre;, afirma De Mori, jesuíta como o atual papa.
Mesmo recluso, Ratzinger tem acompanhado, com atenção, cada gesto de Francisco. Ele mora no mosteiro Mater Ecclesiae, no interior do Vaticano, logo atrás da Basílica de São Pedro, reformado especialmente para recebê-lo. Passa os dias acompanhado do secretário particular, prefeito da Casa Pontifícia e amigo dom Georg G;nswein, o ;Don Giorgio;; de mais quatro ou cinco pessoas que o auxiliam; e do gato de estimação, que vez ou outra é visto rondando o quintal da residência.
;Viejo;
A imprensa noticiou apenas dois encontros dos papas ; 10 dias após o fim do conclave e às vésperas do Natal do ano passado. No entanto, ao menos uma vez por semana, Francisco conversa por telefone ou visita Bento XVI, a quem ele chama de ;viejo;, expressão em espanhol (a língua nativa do atual papa) usada em tom carinhoso para expressar algo como ;paizão;. ;Seria uma loucura, uma estupidez, se eu não me aconselhasse com ele;, costuma afirmar o argentino aos mais próximos.
Embora aos olhos do mundo haja uma ruptura clara entre os pontificados de Bento XVI e de Francisco, o primeiro papa latino-americano da história da Igreja encara a sua missão como continuidade à do antecessor. ;A base das reformas em andamento foi feita por Bento XVI. Francisco recebeu um tesouro doutrinal e arregaçou as mangas;, sublinha dom José Aparecido, ex-subsecretário do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, atualmente bispo auxiliar de Brasília.
Os dois papas ; algo que ainda soa estranho ; beberam da mesma fonte da espiritualidade, bastante centrada na obra do sacerdote ítalo-alemão Romano Guardini, falecido em 1968. Francisco considera Bento XVI um dos maiores intelectuais do século. Não à toa, iniciou a primeira exortação apostólica, a Evangelii Gaudium, com ensinamentos dele, além de ter contado com o apoio integral do alemão na primeira encíclica, Lumen Fidei. ;O ;viejo; quem escreveu. Dei apenas alguns retoques;, brinca Francisco, internamente.
Por ordem do atual papa, o secretário de Estado do Vaticano, Pietro Parolin, tem ajudado a responder as centenas de cartas que Bento XVI recebe diariamente de leigos e religiosos do mundo inteiro, inclusive do Brasil. Essa é uma das raras interferências de Francisco na rotina do alemão, que, na condição de emérito, não dispõe mais dos protocolos papais. A segurança dele, por exemplo, é feita por homens do Vaticano, e não pela Guarda Suíça.
Tranquilidade
Bento XVI recebe um salário mensal de 2,5 mil euros (o equivalente a R$ 8 mil) para gastos pessoais ; dois terços do que é pago no segundo escalão da Cúria Romana. Como tanto desejou, o alemão tem mantido uma rotina tranquila, com leituras, escritas, oração e música. Exímio pianista, o papa emérito segue tocando Bach e outros ícones das músicas clássica e sacro-erudita. ;Ele leva uma vida de bispo aposentado;, define uma autoridade eclesial.
Nos meses seguintes à renúncia, a quem o visitasse, Bento XVI deu claros sinais de que estava deprimido. Chegou a perder peso, sobretudo na temporada de pouco mais de um mês na residência de Castel Gandolfo, onde se refugiou inicialmente. A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) no Brasil, em julho do ano passado, teria o ajudado na recuperação. ;Quando vejo a alegria que Francisco dá ao povo, me sinto feliz e confirmado na decisão que tomei. A Igreja está sendo amada;, afirmou Bento XVI a um cardeal espanhol que o visitou dias depois da JMJ.
Pela televisão e pelo tablet ; emprestado de Don Giorgio ;, o alemão se entusiasmou com a multidão estimada em 3,5 milhões de pessoas na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, na missa de encerramento do evento. Ao saber que um dos jovens a dar testemunho no palco era irmão do padre carioca Bruno Lins, bastante respeitado no Vaticano, onde vive desde 2009, Bento XVI pediu para falar com o sacerdote. Na rápida ligação ao Brasil, confessou ter ficado comovido com as cenas que assistira.
Ainda que, como bom alemão, transpareça pouca emoção nem tenha sido o mais carismático dos papas, Joseph Ratzinger é descrito por quem convive com ele como ;uma pessoa extremamente humana;. ;As comparações com Francisco não incomodam Bento XVI, porque ele sabe que é um intelectual, e não um homem pastoral, de contato com o povo. Aceitar a eleição no conclave de 2005 foi um grande gesto de generosidade por parte dele;, avalia o padre Geraldo de Mori.
Nesse primeiro ano longe do trono de São Pedro, também ajudaram a manter o ânimo de Bento XVI as boas lembranças que ele guarda dos últimos dias antes do período da sede vacante, quando a Igreja fica sem papa, à espera do conclave. Milhares de pessoas acompanharam sua última audiência geral, na Praça de São Pedro, e a despedida derradeira, do alto de uma janela na residência de Castel Gandolfo. Nos muros de Roma, cartazes e faixas expuseram fotos e mensagens de apoio ao alemão.
"Não retorno à vida privada, a uma vida de viagens, encontros, conferências. Não abandono a Cruz, continuo de uma nova maneira com o Senhor Crucificado. Continuo a Seu serviço no recinto de São Pedro;
Bento XVI,
em sua última aparição pública como papa