Em média dois caixões vindos do Catar chegam por dia ao aeroporto de Katmandu. É assim que são repatriados os corpos dos operários nepaleses que tentaram a sorte neste Eldorado econômico do Golfo, que se prepara para receber a Copa do Mundo de 2022.
Quando Dol Bahadur Khadka encontrou, no início do ano, um emprego para trabalhar ilegalmente nos Emirados, sua esposa Devi Khadka, de 44 anos, esperava que a família de sete conseguiria enfim escapar da miséria.
Bahadur, porém, acabou caindo do prédio no qual trabalhava como operário, deixando uma dívida de 1.200 dólares, a quantia que ele havia pedido emprestado para financiar a aventura.
"Nós perdemos tudo. Era nossa única esperança de um mundo melhor", contou à AFP Durga Devi, que vive no vilarejo de Pala, 230 km a oeste da capital nepalesa.
Em alguns meses no Catar, Bahadur conseguiu mandar de volta à família 13.000 rúpias (1.300 dólares). Seus empregadores tiveram que pagar 700.000 rúpias (7.000 dólares) de indenização por sua morte, valor que, segundo a viúva, serviu para cobrir os gastos com o enterro.
"Ele viajou para sustentar a família, e agora temos que trabalhar como entregadores de jornal em fazendas", contou Devi.
Cerca de um milhão de nepaleses trabalham no sudeste da Ásia e no Golfo persa tentando escapar de um mercado de trabalho interno devastado.
;Nunca mais voltarei ao Catar;
O jornal inglês The Guardian, ele revelou em setembro que 44 operários nepaleses tinham morrido nos canteiros do Catar entre junho e agosto, denunciando uma forma de "escravidão dos tempos modernos".
As autoridades catariana, que contrataram um escritório de advocacia internacional para representá-los, acreditam que os números estão inflacionados e não condizem com a realidade.
Por outro lado, a Fifa, entidade que rege o futebol no mundo, incomodada com a grande controvérsia gerada quando entregou a Copa do Mundo-2022 ao Catar, enviou recentemente "seus pêsames" pelas mortes, fazendo questão de dizer que o país tinha prometido tomar providências.
Estas intenções, porém, não comovem Purna Bahadur Budhathoki, que voltou do Catar há algumas semanas. "Nunca mais voltarei ao Catar", jurou.
Jornadas de 12 horas, temperaturas elevadas, falta de água. Ele afirma ter vivido em condições precárias.
Assim como outros 300.000 trabalhadores do Nepal, país que tem uma taxa de desemprego de cerca de 50%, Budhathoki também se viu atraído pela promessa de dinheiro no Catar, que investe bilhões de dólares por todo o mundo, e precisa de uma abundante mão de obra para construir os estádios e a infraestrutura necessária para o Mundial de 2022.
Como muitos compatriotas, esse pai de quatro filhos conseguiu reunir 1.200 dólares para pagar uma agência nepalesa e se tornar um condutor de escavadeira.
Passaporte confiscado
Alguns dias após começar a trabalhar no canteiro, ele teve seu passaporte confiscado e o visto de trabalho foi negado. Ao reclamar, seu chefe o ameaçou com uma surra. "Ele me mandou calar a boca e voltar ao trabalho. Fiquei com medo e não tive outra escolha, tive que continuar", relembrou.
Budhathoki e os colegas trabalhavam do nascer ao pôr do sol, muitas vezes sem capacete ou luvas. Quando a polícia vinha inspecionar o local, eles eram obrigados a se esconder.
De noite, ele dividia com outros sete compatriotas um quarto de menos de 8m2. O edifício "tinha rachaduras por todos os lados; tínhamos a impressão que ele poderia desabar a qualquer momento".
Desesperado, Budhathoki conseguiu finalmente alertar a embaixada e voltar para casa, após cinco meses de calvário.
De acordo com uma investigação da Anistia Internacional, os operários podem passar semanas sem receber salário.
O responsável pela investigação, Rameshwar Nepal, criticou o sistema, no qual os operários precisam pedir autorização para deixar uma empresa, além de permitir aos empregadores confiscar os passaportes.
"Isso parece trabalho forçado porque os empregados não podem passar de uma empresa para outra que ofereça melhores condições de trabalho sem pedir autorização primeiro" aos empregadores que detém os passaportes, explicou.
"Num canteiro em Doha, encontramos trabalhadores que viviam sem comida há semanas", continuou. "A maior parte era oriunda do Nepal e vivia empilhada em beliches. Não tinham eletricidade e o calor era insuportável", concluiu.