Cidade do Vaticano - Com Bento XVI de volta ao papel de "simples peregrino", a procura por seu sucessor à frente da Igreja começa em meio a críticas ao pontificado e à demissão histórica que não foi bem compreendida por todos.
Enquanto a maior parte dos 115 cardeais eleitores - com menos de 80 anos - já se encontra no Vaticano e participou da despedida do agora "Papa emérito", o decano do colégio dos cardeais da Igreja, Angelo Sodano, enviou convocações para as primeiras reuniões preparatórias do conclave, "as congregações gerais", na segunda-feira na sala do sínodo.
Nessas reuniões será decidida a data do próximo conclave, que sem dúvida deverá ocorrer após 10 de março, segundo estimativas, com o objetivo de eleger um papa a tempo para que ele presida as cerimônias de Páscoa, a maior festa dos cristãos.
No momento, o conclave está em aberto e não há consenso sobre um nome: "Bento XVI não deixou mensagem subliminar", comentou o cardeal capuchinho americano e "papabili" Sean O;Malley, quinta-feira à noite em Roma.
Mas as congregações gerais, a portas fechadas, também são ocasião para colocar os problemas na mesa... O que pode levar tempo, segundo alguns vaticanistas.
Nos últimos dias, vários cardeais - da Bélgica e da Austrália - disseram em alto e bom tom o que muitos de seus pares guardam para si: estão pouco se importando com a gestão da Cúria romana.
O caso "Vatileaks" em 2012 foi recebido como produto de uma queixa contra os italianos, que continuam a dominar o governo da Igreja.
Muito respeitado por sua mensagem religiosa, o Papa emérito é criticado por não ter sido um bom administrador e por não ter sabido driblar disputas internas.
"Seu sucessor deve pegar a Cúria pelas mãos", estimou nesta quarta-feira o cardeal belga Godfried Danneels.
"Um órgão executivo sempre tem uma certa tendência a virar legislativo, a tomar o poder pelas mãos. Deve existir alguém para remediar isso", disse o antigo bispo da Bélgica, que pediu maior "decentralização" para que possa emergir a "cultura do debate (...) quase inexistente".
Segundo Danneels, o soberano pontífice deve ser cercado de um "conselho da coroa" composto por bispos e cardeais "vindos de todos os continentes", um endereço "onde se possa falar de tudo".
Um cardeal eleitor aposentado afirmou, em entrevista à AFP, que o concílio vaticano II deu "instrumentos" para uma gestão colegial mas que eles caíram pouco a pouco em desuso.
Bento XVI "tinha um temperamento solitário, ele se isolou. Ele raramente reunia seu conselho pessoal, e sempre que o fazia era para uma formalidade", lamentou.
O chefe da igreja católica da Austrália, George Pell, também disse que "governar não era o forte" de Bento XVI.
"Eu acredito que o governo é garantido pela maior parte das pessoas que cercam o papa e isso nem sempre é brilhante. Essa é uma opinião compartilhada por muitos", ressaltou o cardeal. Para ele, o sucessor "deverá ser capaz de elevar o moral da Cúria romana e talvez reforçar sua disciplina".
As últimas pseudo-revelações sobre um "lobby gay", alvo de extorsões no Vaticano, reforçam ainda o sentimento dos prelados não-romanos.
Nesta sexta-feira, a historiadora e editorialista do jornal Osservatore Romano, Lucetta Scaraffia, também falou no mesmo sentido: "o Vaticano precisa não de uma reforma institucional, mas uma reforma moral, que vai prezar pela meritocracia e pela verdadeira humildade".
Submetidos a duras críticas pela opinião pública pela gestão da crise da pedofilia, estes cardeais ocidentais também fazem cara feia para as intrigas do Vaticano.
O campo dos ocidentais, americanos à frente, deverá fazer pressão para uma reforma enérgica da Cúria e poderia fechar o caminho dos italianos.
O monsenhor George Pell também criticou a demissão de Bento XVI que, segundo ele, estabelece uma "ruptura um pouco desestabilizante".
"Estes que, por exemplo, estariam em desacordo com um futuro papa, teriam sido tentados a fazer campanha para incentivar sua demissão", estimou.
Segundo fontes vaticanistas, muitos prelados compreenderam mal esta decisão, interpretando-a como "covardia". Por isso, Bento XVI teria falado várias vezes sobre as razões de sua demissão.
"O choque para os tradicionalistas foi como a sentida japoneses quando descobriram, em 1945, que Hirohito [imperador do Japão] não era Deus", comentou o vaticanista Marco Politi no jornal Fatto Quotidiano.