Cristina Kirchner tornou-se, oficialmente, a mulher mais poderosa da Argentina em quase 40 anos. Com ampla maioria na Câmara e no Senado, e com o apoio de boa parte dos governadores, a presidente argentina começa o segundo mandato em posição confortável. Mas a vida não deve ficar muito fácil para ela, à frente do chamado ;cristinismo; ; uma evolução do kirchnerismo, termo cunhado para seu falecido marido, o ex-presidente Néstor Kirchner. Conhecida pela postura sedutora e autoritária, Cristina terá de lidar com uma dívida externa astronômica, brigas com sindicatos e uma inflação que pode chegar a 30% no ano que vem. Nessa cruzada, analistas acreditam que ela aproveitará as vantagens políticas conquistadas na última eleição para dar a si mesma mais liberdade e poder.
A grande batalha econômica da presidente argentina começou ainda no mês passado, quando ela aprovou cortes nos subsídios para os setores de energia e de transportes. O governo investia muito nessas áreas e, com a decisão, vai perder um pouco do caráter intervencionista. ;Aparentemente, o novo mandato terá um afrouxamento nesse sentido. Percebemos isso pela escolha do novo ministro da Economia, Hernán Lorenzino, uma cara jovem que tem a visão mais voltada para o mercado;, observa o professor Aldo Fornazieri, diretor acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. A escolha de Lorenzino também indica a disposição de Cristina para melhorar a credibilidade financeira do país diante da comunidade internacional.
;Um dos maiores desafios será melhorar a confiança dos investidores, por meio de um acordo com o Clube de Paris e com os credores da dívida pública que ganharam ações na Justiça;, afirma Mark Jones, pesquisador de América Latina e chefe do Departamento de Ciência Política da Rice University, no Texas. Desde a moratória, em 2001, a Argentina acumulou mais de US$ 9 bilhões em dívidas com o Clube de Paris, organização informal de nações que prestam ajuda financeira a outros países. Cristina também terá de restabelecer a amizade com os Estados Unidos. No começo deste ano, o governo argentino interceptou um avião norte-americano que chegou a Buenos Aires, com a justificativa de que a aeronave estaria carregada com armas e drogas ; o que, mais tarde, foi desmentido. ;As relações com os EUA estão completamente estremecidas, e Cristina precisa trabalhar isso. Se pretende voltar aos mercados, ela terá de negociar com o governo norte-americano;, diz o brasileiro Aldo Fornazieri.
Além de restaurar a imagem financeira do país, Cristina deve aproveitar os próximos quatro anos para sair, definitivamente, da sombra de Néstor Kirchner. Embora continue observando luto e mantenha as linhas gerais da política do marido, a presidente deve fortalecer sua identidade como líder. ;Já houve uma mudança na base do poder: Néstor se apoiava mais no peronismo clássico (baseado em governadores e prefeitos) e no sindicalismo, enquanto Cristina prefere os jovens e rejeita os poderes tradicionais, principalmente o dos sindicatos;, destaca Jorge Liotti, professor na Universidade Católica Argentina (UCA) e editor de política do jornal Perfil.
Liderança
Em comum, Néstor e a sucessora têm a valorização da liderança personificada. O pesquisador Mark Jones acredita que essa noção fará com que a presidente lute na Câmara e no Senado pela ampliação dos poderes do Executivo. ;Mais do que qualquer outra coisa, Cristina vai usar a maioria governista para aprovar uma legislação que delegue grande poder e flexibilidade a seu cargo, permitindo que governe com relativa autonomia;, diz Jones. As consequências disso seriam a ampliação das leis de emergência e das regras que permitam à Presidência fazer alterações no orçamento sem consulta parlamentar.
A confortável posição de Cristina lhe permite, ainda, maior controle sobre o que é dito pela imprensa. Desde o primeiro mandato, a presidente tem trocado farpas com dois dos maiores grupos de comunicação, o Clarín e o La Nación. Constantemente, a população se envolve nas discussões, muitas vezes acusando os veículos e os jornalistas de mentirosos. ;A relação entre o governo e a imprensa é de hostilidade mútua. O governo busca tirar o poder dos meios de comunicação e, em grande parte, já conseguiu atingir esse objetivo;, avalia Jorge Liotti. Há também uma grande divisão no país. ;As empresas estão totalmente separadas entre as oficialistas, que cresceram muito nos últimos anos, por conta do aporte de publicidade do governo, e as críticas. Só alguns poucos mantêm uma linha intermediária;, aponta.
As grandes empresas jornalísticas se indignaram com a aprovação da nova Lei dos Meios, no ano passado. Ela determina, entre outras coisas, que o espectro de radiodifusão seja dividido não só entre as companhias tradicionais, mas também entre organizações que pratiquem o jornalismo militante, defensor de causas. E o conflito deve ficar ainda mais ácido daqui para a frente. ;Se Cristina levar adiante a ideia de estatizar a Prensa Papel (empresa que fornece papel para os jornais), terá forte poder de barganha e um meio de controle físico da imprensa;, alerta o professor Fornazieri.
Índice mascarado
A inflação oficial da Argentina é medida pelo Instituto Nacional de Estatística e Censo (Indec), uma espécie de equivalente ao IBGE brasileiro. A previsão para este ano é de que a taxa fique entre 9% e 9,5%. Só que esse valor não é real. Diversas consultorias privadas, e respeitadas, fizeram levantamentos paralelos e concluíram que o índice ficará entre 20% e 25% em 2012. O governo proíbe essas instituições de divulgar os números.