Somente agora países sul-americanos começam a tratar as feridas abertas décadas atrás e a desafiar o que por muitos anos foi considerado um tabu. Duas decisões, do Judiciário argentino e do Legislativo uruguaio, abrem as portas para a punição dos agentes da Operação Condor ; uma aliança político-militar dos regimes militares do Cone Sul para reprimir opositores e assassinar líderes da esquerda, entre as décadas de 1970 e 1980. Às 2h14 de ontem (27/10), a Câmara dos Deputados do Uruguai aprovou um projeto de lei que classifica de lesa humanidade os crimes cometidos durante a ditadura (1973-1985) e anula a prescrição dos delitos. O presidente José Mujica confirmou que sancionará a nova lei e a enviará à Suprema Corte de Justiça. ;A consciência popular está amadurecendo, e esse é um processo pelo qual temos que passar;, declarou o mandatário.
Na outra margem do Rio da Prata, a 180km de Montevidéu, familiares de desaparecidos políticos (Leia as Duas Perguntas Para) celebravam a histórica condenação de 12 repressores à prisão perpétua, incluindo os ex-oficiais Alfredo Astíz (o ;anjo da morte;), Jorge ;El Tigre; Acosta, Antonio Pernías e Ricardo Cavallo. Todos integravam a emblemática Escola de Mecânica da Armada (Esma), um centro clandestino de detenção e tortura. Após a leitura do veredicto, ativistas de direitos humanos gritaram: ;Vai acontecer com os nazistas, onde forem iremos buscá-los;. Astíz é acusado de sequestros, tortura e homicídio.
Roberto Gargarella, professor de direito da Universidad de Buenos Aires, admite que a Argentina desenvolveu, em meio a percalços, uma política de julgamento dos crimes da ditadura. ;O primeiro passo foi dado durante o governo de Raúl Alfonsín (1983-1989), que inaugurou essa política. Submetido a pressões intensas, ele bloqueou a possibilidade de seguir com as punições e criou outra saída legal;, lembra, por e-mail. Segundo Gargarella, as sentenças da noite de quarta-feira foram consequência do ativismo social. ;Indivíduos, grupos e organizações mostraram uma rejeição às políticas de anistia. Isso é muito importante e, talvez, a marca mais relevante da recente história argentina.;
O advogado uruguaio Martin Risso Ferrand, diretor do Departamento de Direito Constitucional e de Direitos Humanos da Universidad Católica del Uruguay, explica ao Correio que a decisão em seu país atendeu a uma exigência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). O organismo declarou a nulidade das soluções de anistia e ordenou o julgamento dos responsáveis. ;Os juízes aplicavam a lei de caducidade ; uma espécie de anistia ; e, por isso, não se punia os culpados. A sentença da CIDH obriga a reabertura das investigações.;
Anistia
Se o Uruguai e a Argentina acertam as contas com o passado, o Chile e o Brasil dão passos trôpegos. O historiador chileno Alberto Harambour Ross, professor da Universidad Diego Portales (em Santiago), afirma que o país não derrogou a Lei de Anistia de 1978. ;A Suprema Corte tem aplicado, em certos casos, o critério de imprescritibilidade. Ante o acúmulo de condenações com penas baixas, as cúpulas dos aparatos repressivos da ditadura cumprem as sentenças em recintos especiais e em prisões sob a administração do Exército;, comenta, por e-mail. Pelo menos 80 criminosos estão atrás das ;grades;. Apesar de oficiais de organismos especializados ; como a Direção de Inteligência Nacional (Dina) e a Central Nacional de Informações (CNI) ; terem sido processados, a impunidade ronda as Força Armadas.
Na noite de anteontem, o Senado brasileiro aprovou a criação da Comissão da Verdade. A entidade, formada por sete integrantes escolhidos pela presidente, Dilma Rousseff, poderá investigar violações durante a ditadura. No entanto, terá um prazo de dois anos para funcionar e não poderá punir os criminosos. Alberto Harambour aposta que a dinâmica dos vizinhos extinguirá o poder dos serviços de inteligência e impulsionará o Brasil a superar o simbolismo da luta contra a ditadura. ;Na medida em que o Brasil avançar rumo ao esclarecimento da verdade e à justiça sobre o passado, será possível construir uma sociedade mais justa.;