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Líbia precisará reconstruir o Estado e negociar com diferentes tribos


Quase oito meses se passaram desde que Zine El Abidine Ben Ali foi obrigado a deixar o poder, após governar a Tunísia por mais de duas décadas. A Primavera Árabe começava a exalar seu perfume, que alcançaria o Egito menos de 30 dias depois, com a deposição de Hosni Mubarak. Ben Ali foi julgado à revelia e condenado a 35 anos de prisão, enquanto Mubarak apareceu no tribunal com a saúde fragilizada, deitado sobre uma maca. Se o futuro dos dois tiranos parece favas contadas, o mesmo não se pode dizer de seus países. Egípcios e tunisianos se esforçam para reconstruir suas nações, mas deverão ter menos trabalho que os líbios. A transição de poder provavelmente será árdua: o Estado praticamente inexiste, após ser transformado na própria figura do ditador Muamar Kadafi. O Correio entrevistou especialistas e cidadãos da Tunísia e do Egito. Eles analisaram o panorama político, social e econômico de seus países, recém-libertados da ditadura, e citaram os desafios da Líbia.

Haykel Azak, de 28 anos, é o responsável pelo marketing de uma grande concessionária de veículos, em Túnis. Ele vê mudanças importantes no dia a dia dos tunisianos. ;Antes da revolução, você não podia comprar crepe de queijo e atum sem Ben Ali olhando fixamente para você;, afirmou, por meio da internet. ;Até as fotos dele ameaçavam as pessoas. Agora que tudo mudou, nós nos sentimos livres para dizer o que pensamos, para gritar sem qualquer medo;, acrescentou. No Cairo, Yomna El-Sheikh, de 24 anos, acha que a situação econômica no Egito se agrava a cada dia. ;O Supremo Conselho das Forças Armadas ; responsável pelo governo transitório ; é pior do que Mubarak. As pessoas saem às ruas por qualquer coisa, e isso não tornará o país melhor;, desabafou. Ela aposta que, na Líbia, a transferência de governo será bem mais difícil. ;Há uma guerra em curso lá. Sabemos que as armas e a violência só pioram as coisas;, disse Yomna.

O também egípcio Mohammad Salama, professor do Programa Árabe da San Francisco State University (SFSU), vê cenários bem diferentes nos levantes populares e na estratificação sociopolítica na Líbia e no Egito. Ele lembra que, em seu país, a revolução durou três semanas e terminou de modo pacífico. ;Os revolucionários líbios são bravos em se levantar contra Kadafi e contra seu exército. Houve ajuda da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), mas o povo da Líbia carregou o destino em suas próprias mãos;, observou. Ele lembra que pouco se sabe sobre as ideologias dos revolucionários. ;Não sabemos nem se eles têm uma visão unificada de qual será o futuro da Líbia;, emendou.

Salama lembra que, no Egito, as dificuldades já são conhecidas. ;Muitos grupos têm visões divergentes sobre os rumos do país (por exemplo, os salafistas, a Irmandade Muçulmana, os marxistas, as extremas direita e esquerda, os secularistas). Eles competem pelo poder;, disse.

Por sua vez, o tunisiano Jabeur Fathally ; professor de direito da Universidade de Ottawa (Canadá) ; alerta: ;A Líbia precisa trabalhar duro para criar um consenso entre as tribos e os atores políticos;. Segundo ele, a existência de um movimento islâmico armado, regido pelo Conselho Nacional de Transição (CNT) líbio, torna a transição mais difícill. ;Na Tunísia, a passagem de poder está praticamente pavimentada, a menos que um grande evento ocorra, como os generais decidirem se impôr no governo. Na Líbia, será preciso construir um novo Estado, com uma instituição moderna e robusta;, prevê.

Trunfo
Fathally explica que, mesmo sob uma ditadura, a Tunísia possui uma população bastante homogênea, sem tribos, sem etnias religiosas e sem disputas raciais. Ingredientes, de acordo com ele, que facilitam as articulações políticas. Para cumprir com sua tarefa quase hercúlea, a Líbia terá uma carta na manga ; o petróleo. O país detém as maiores reservas da África, com 42 bilhões de barris e 1,3 trilhão de metros cúbicos de gás. ;O petróleo torna a Líbia um centro de interesse de muitas potências ocidentais, e esses Estados apoiarão o grupo que trabalhar em prol deles;, aposta o tunisiano. A cooperação internacional pela reestruturação do governo líbio ficou evidenciada anteontem, quando os 60 países participantes da Conferência de Amigos da Líbia decidiram liberar US$ 15 bilhões em bens do regime de Kadafi. A verba deverá ser colocada à disposição do CNT.

Tanto a Tunísia quanto o Egito tentam costurar seu futuro político. As eleições gerais tunisianas ocorrerão em 23 de outubro, e contemplarão a escolha de uma nova Assembleia Constituinte ; que agirá como Parlamento para rascunhar a Constituição. Os egípcios flutuam entre a incerteza e a esperança. Personalidades influentes já se apresentaram para suceder Mubarak, como Mohammed ElBaradei (ex-diretor da Agência Internacional de Energia Atômica), Amr Mussa (secretário-geral da Liga Árabe) e o opositor Ayman Noor. ;O problema é que o sistema eleitoral está ultrapassado e dúbio, enquanto a força policial permanece sem poder;, alerta Salama. O especialista da San Francisco State University admite que a situação em seu país natal possa fugir do controle. O caos na segurança conferiria legitimidade ao Conselho Supremo das Forças Armadas, permitindo sua continuidade no comando do país.

Pontos de vistas
Por Jabeur Fathally
;As coisas estão indo bem na Tunísia;
;Apesar de alguns problemas de segurança, as coisas estão indo bem na Tunísia, especialmente desde que o governo mostrou seu compromisso em respeitar a data-limite de 23 de outubro como prazo para a eleição da Assembleia Constituinte. A situação melhorou, mas ainda é frágil, e todos os atores políticos aguardam o resultado da eleição. Deveremos observar o comportamento de dois atores políticos. Em primeiro lugar, a tendência islâmica. O Partido do Movimento de Renascença (Hizb Ennhdha), legalizado em maio de 2011, após ser proibido por 30 anos, tornou-se a maior facção organizada na Tunísia. O segundo ator é o exército: teremos que ver se está pronto a aceitar que os islamistas vencerão as eleições.;
; Tunisiano, é professor de direito da Universidade de Ottawa (Canadá)

Por Mohammad Salama
;A ditadura ainda existe no Egito;
;O Egito deu um notável passo que chocou e impressionou o mundo. E o fez de forma magistral. Dez anos atrás, o país cambaleava sob a impiedosa ditadura de Mubarak, que silenciou a dissidência, restringiu a liberdade de expressão e aprisionou centenas de líderes da oposição, entre eles Ayman Noor ; o primeiro e último candidato a concorrer com Mubarak, em 2005. Como em qualquer lugar, a política corre de mãos dadas com a economia. A ditadura tornou-se surda frente a crescente miséria no país e as taxas de desemprego recordistas. Mas a ditadura ainda existe e, como um tumor, tem ramificações. A rede de amigos de Mubarak não foi expurgada das posições no governo e no setor privado.;
; TEgípcio, é professor do Programa Árabe da San Francisco State University