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Desfigurada por ácido perdoa agressor antes da aplicação da mesma sentença

Hospital Dadgostari, Teerã. Estava tudo pronto para que o iraniano Majid Movahedi, de 27 anos, ficasse cego pelas 10 gotas de ácido sulfúrico que seriam derramadas sobre seus olhos. A punição, um pedido expresso de sua ex-colega de universidade Ameneh Bahrami Nava (leia a entrevista), ocorreria pontualmente às 6h (22h30 de sábado em Brasília). ;Sobre ele, inflijam a mesma vidaque ele infligiu sobre mim;, recomendou ao tribunal, em 2009. Minutos antes do horário marcado, a sentença foi cancelada ontem a pedido da própria Ameneh.

A mulher de 30 anos decidiu abrir mão da aplicação da milenar Lei de Talião, que determina a reciprocidade do crime e da pena e normalmente é aplicada para casos de assassinato. Em 2009, a Corte Suprema do Irã atendeu à solicitação de Ameneh e condenou Majid à cegueira. Ontem, um bilhete assinado pela vítima e sua presença no hospital determinaram o perdão ao agressor. A sharia (lei islâmica) permite a chamada qisas (retribuição), mas também aconselha clemência, especialmente antes e depois do Ramadã, o mês sagrado para os muçulmanos.

Responsabilidade
Em 2004, revoltado com a recusa de Ameneh em casar-se com ele, Majid despejou uma jarra com ácido sobre o rosto da ex-colega. Ela ficou completamente desfigurada, perdeu a visão e precisou mudar-se temporariamente para a Espanha, onde se submeteu a várias cirurgias plásticas. ;Ameneh esteve sujeita a dois crimes nesse caso. Em primeiro lugar, seu rosto e seus olhos foram gravemente danificados por Majid. Em segundo lugar, o regime iraniano envolveu-a na punição e ela tem estado sob imensa pressão por isso;, afirmou à reportagem o ativista de direitos humanos Mahmood Amiry-Moghaddam. ;Segundo as leis internacionais, a punição é de responsabilidade do Estado, e não de uma pessoa;, acrescentou.

De acordo com o promotor de Teerã Jafar Dolatabai, Ameneh desistiu de reclamar a cegueira do agressor, mas exigiu uma indenização baseada no princípio do ;dinheiro por sangue;. Ao Correio, ela revelou que pedirá 150 mil euros (cerca de R$ 334 mil) à família de Majid. A pena deveria ter sido aplicada em 14 de maio, mas as autoridades decidiram adiá-la para ontem, sem qualquer justificativa. ;Travamos uma dura luta para conseguir esse veredicto e estou orgulhosa de que Ameneh tenha conseguido força para perdoar Majid. A não aplicação dessa pena acalma Ameneh e nossa família;, garantiu a mãe da iraniana à agência de notícias Isna. A Anistia Internacional e outras entidades de defesa dos direitos humanos alegaram que a sentença era ;um castigo cruel e desumano, equivalente a um ato de tortura;.

Entrevista - Ameneh Bahrami Nava

;Eu não queria a execução da pena;

Ameneh Bahrami Nava espera um futuro de paz, ainda que jamais se livrará do trauma. O pesadelo vivido em outubro de 2004 a acompanhará pelo resto da vida. Está estampado no seu rosto. Em entrevista exclusiva ao Correio, por telefone, de Teerã, a iraniana de 30 anos afirmou que jamais quis se vingar de Majid Movahedi ; o homem que lançou uma jarra de ácido contra a face dela. Ameneh descreveu a reação do ex-colega do curso de eletrônica ao perceber que ela havia lhe perdoado. ;Ele caiu no chão, beijou meus pés e disse ;Perdão, perdão, eu sinto muito;;, relatou.

Após o ataque, ela precisou se submeter a 17 cirurgias plásticas. Todas as tentativas de reconstruir o rosto fracassaram. As operações, realizadas em Barcelona, ajudaram-na a recuperar metade da visão do olho esquerdo. Mas uma infecção contraída em 2007 devolveu-lhe a escuridão total. Hoje, Ameneh sabe que as pessoas a veem de forma diferente, mas ela garante que não se importa com isso. Tudo o que ela deseja é que a Justiça determine que Majid pague uma indenização equivalente a 150 mil euros. Até então, Ameneh desejava que o agressor pagasse na mesma moeda, com a aplicação da chamada Lei de Talião. ;Majid afirma que quer se casar comigo, mas não quero saber dele. Para mim, ele não existe;, afirmou.


Por que a senhora decidiu perdoar o homem que jogou ácido em seu rosto?
Eu não queria executar a sentença. Para mim, era importante fazer valer a lei. Nada mais. Eu nunca quis fazer (vingança), mas apenas firmar a lei. No Corão, está escrito que eu posso optar pela Lei de Talião ; ;olho por olho, dente por dente;. Segundo a palavra do Corão, Deus afirma que está bem se essa lei vigorar. Esse garoto (Majid Movahedi) não tem educação e não me pediu perdão. Ele o fez, mas era muito tarde. Para mim, era importante apenas firmar a Lei de Talião, mas eu não quero aplicá-la.

Como a senhora conviveu com as marcas do ácido nestes últimos anos?
Eu e Majid estudávamos eletrônica na mesma universidade. Ele era apenas meu colega de universidade, nada mais. Um dia, quando voltava do trabalho (em 2004), Majid despejou uma jarra de ácido em minha face. Antes disso, ameaçou-me muito e disse que desejava me matar. Como ele não podia me matar, me queimou. Seis meses depois (da agressão), fui até Barcelona para operar os olhos. Em Barcelona, eu ainda podia enxergar. Mas, após uma infecção, perdi a visão.


A Lei de Talião teria que ser uma medida de justiça necessária para seu caso?
Em um primeiro momento, eu escolhi a Lei de Talião para jogar ácido na cara dele. Antes de aplicar o ácido nele, Majid me pediu perdão. Depois, ele caiu no chão, beijou meus pés e disse: ;Perdão, perdão, eu sinto muito;.

Por que Majid tomou essa atitude tão violenta contra a senhora?

Porque ele não tem educação, não tem cultura. Sua família é muito baixa, não em termos de dinheiro, mas de cultura. Eu pedi 150 mil euros como indenização.

Que mensagem a senhora enviaria a Majid?
Majid afirma que quer se casar comigo, mas não quero saber dele. Para mim, ele não existe. Hoje, as pessoas me veem diferente, mas sinto que sou a mesma pessoa. Eu e minha família estamos tranquilas.

De que modo analisa o sistema judicial do Irã?
O sistema judicial é muito bom. A Lei de Talião é necessária. (RC)


Hoje, as pessoas me veem diferente, mas sinto que sou a mesma pessoa;

Como Majid não podia me matar, ele me queimou com o ácido;

Ouça trechos de entrevista com Ameneh Bahrami Nava