Em 11 de julho de 1995, as forças sérvio-bósnias comandadas pelo general Ratko Mladic invadiram a cidade muçulmana de Srebrenica, que estava sob a proteção de um contingente holandês em missão da Organização das Nações Unidas (ONU). O povo entregou as armas, mulheres e crianças foram retiradas da cidade e todos os homens com idade entre 12 e 77 anos foram detidos para ;interrogatório;. O resultado, depois da saída dos militares estrangeiros, foram quase 8 mil mortos. O massacre de Srebrenica, como ficou conhecido um dos episódios mais sangrentos da Guerra da Bósnia (1992-1995), virou exemplo de omissão das forças de paz em uma guerra. Quase 16 anos depois, ele motivou uma decisão histórica: o Tribunal de Apelações de Haia condenou o Estado holandês pela morte de três muçulmanos que foram entregues às tropas invasoras, sentença que cria precedentes para centenas de outros processos.
A Corte de Haia considerou que o Dutchbat (abreviatura em inglês para ;batalhão holandês), encarregado de proteger Srebrenica em 1995, ;não deveria ter entregue os homens aos sérvios;. Os ;capacetes azuis;, como são chamados os soldados em missão da ONU, eram responsáveis por uma zona de proteção em torno da cidade, para evitar ataques dos sérvios aos civis muçulmanos. O caso julgado ontem estava centrado em três vítimas do maior massacre cometido na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.
Eram civis que trabalhavam com a missão estrangeira e estavam entre milhares de habitantes acolhidos pela força da ONU em seu acampamento, por medida de segurança. O governo holandês deverá pagar aos familiares das vítimas uma compensação, cujo valor não foi divulgado.
O sobrevivente do massacre Hasan Nuhanovic, que perdeu o pai e o irmão, e os parentes do eletricista Rizo Mustafic, morto pelas tropas de Mladic, lutaram durante nove anos na Justiça holandesa para conseguir o veredito. ;Acredito que ações similares também possam vencer (no tribunal), ainda que as vítimas não atuem pelo dinheiro, mas por uma questão de princípios;, declarou a advogada Liesbeth Zegveld.
Marco jurídico
A decisão do tribunal de Haia pode mudar o rumo das ações jurídicas em relação a crimes de guerra no mundo todo. ;É um marco na legislação de direitos humanos. Indica que alegações de imunidade não devem mais proteger os Estados de uma legislação mais firme. Este não deve ser um caso apenas da Holanda, mas também de outros países, onde advogados estão usando a lei como ferramenta na busca de reparação para vítimas de violações dos direitos humanos. A Corte holandesa deve receber outras ações similares que estejam ligadas a atrocidades, e não apenas ao massacre de Srebrenica;, disse ao Correio Diane Marie Amann, professora de direito internacional da Universidade da Georgia.
Para o tribunal, ainda que o Dutchbat estivesse sob comando da ONU depois da invasão de Srebrenica, o governo holandês ainda estava envolvido com suas tropas e chegou a participar da decisão de comando sobre a retirada dos civis muçulmanos. Em 2008, o tribunal tinha considerado que a Holanda não deveria ser considerada responsável pelos atos de suas tropas, porque elas obedeciam às Nações Unidas. ;Agora, os Estados devem considerar a possibilidade de ações legais como essa quando se comprometerem a enviar militares para outros países, ainda que no âmbito de missões da paz da ONU;, sugeriu Amann.
Segundo Estevão Chavez Rezende Martins, professor de relações internacionais da Universidade de Brasília, não apenas novos casos podem surgir depois da decisão do tribunal holandês: também a forma como as missões de paz são estabelecidas pode mudar. ;A ONU não costuma dar ordem às tropas internacionais sobre como atuar em situação de combate. Isso aconteceu em Srebrenica e em Ruanda. A sentença do tribunal vai ter uma consequência: ou as Nações Unidas aceitam que a missão não é mais de paz, ou os países vão ficar na dúvida se devem ou não participar;, diz o especialista.