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Comandante dos EUA reconhece riscos da retirada das tropas do Afeganistão



A justificativa do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, é de que o país gastou US$ 1 trilhão na guerra, em uma época de dívida crescente e de dificuldades na economia. ;Agora, devemos investir no maior recurso da América ; nosso povo;, declarou ele, na noite de anteontem. No entanto, o anúncio do início da retirada das tropas do Afeganistão sugere uma jogada política repleta de riscos, em vez de uma priorização da economia. Até o fim deste ano, a Casa Branca pretende repatriar 10 mil soldados norte-americanos, num total de 33 mil até 2012. ;Nossa missão mudará do combate para o suporte. Em 2014, esse processo de transição estará completo, e o povo afegão será responsável por sua própria segurança;, garantiu Obama. No dia seguinte ao discurso, a França, a Alemanha e o Reino Unido reafirmaram seus compromissos com o cronograma de retirada de tropas. O presidente francês, Nicolas Sakorzy, revelou que seu país vai tirar 4 mil militares até o próximo ano.


A decisão dos EUA de acelerar a retirada de tropas tornou-se pública poucos dias depois de o líder afegão, Hamid Karzai, confirmar que a milícia fundamentalista islâmica Talibã mantém um diálogo de paz com Washington. ;Ela é motivada por questões políticas. Se ele entrar na campanha eleitoral com 100 mil soldados no Afeganistão, sem evidência de sucesso, seria desastroso;, admite ao Correio, por e-mail, o cientista político Najibullah Lafraie, ministro das Relações Exteriores do Afeganistão entre 1992 e 1996, no governo de Burhannuddin Rabbani ; deposto pelo Talibã.


;A melhor aposta política de Obama é declarar a vitória, baseada no assassinato de BinLaden, e retirar as tropas o mais rápido possível. Como os oficiais americanos se opõem a isso, o presidente encontrou um meio termo;, acrescenta Najibullah. Para o ex-chanceler, se a segurança não melhorar até 2012, a campanha de Obama será impactada negativamente. Mas ele concorda que a manutenção das forças no país seria ainda mais perigosa.

Opção

O almirante Mike Mullen, principal comandante militar dos EUA, reconhece que o plano de Obama incorre em mais riscos do que ele imaginava. ;Mais forças durante mais tempo é, sem dúvida alguma, o caminho mais seguro. Mas isso não o torna necessariamente o melhor caminho;, declarou ontem, durante audiência na Comissão de Serviços Armados da Câmara dos Deputados. ;Só o presidente, em última instância, pode decidir qual é o nível de risco aceitável que devemos assumir;, disse.


A subsecretária de Defesa, Michele Flournoy, lembrou que 68 mil soldados permanecerão no Afeganistão após 2012 e discordou de Muller. ;Isso é mais do que o dobro das tropas que estavam lá quando Obama assumiu. Não é uma retirada precipitada que poderia pôr em perigo as conquistas em matéria de segurança;, garantiu. O secretário Robert Gates explicou que a remoção dos 33 mil soldados será concluída no fim de setembro de 2012.
Para Haroun Mir, cofundador e diretor do Centro para Pesquisa e Estudos de Política do Afeganistão (em Cabul), os 68 mil soldados que permanecerão no país serão suficientes para impedir que o Talibã ameace o governo de Karzai. ;O Afeganistão continuará dependente das tropas remanescentes após 2014. A insurgência nunca vai acabar, enquanto os fundamentalistas e os grupos terroristas tiverem abrigo e apoio no Paquistão;, sustenta. Mir aposta que a pressão exercida por Washington sobre Islamabad forçará o establishment militar paquistanês a optar por abandonar os Talibãs.

Dias difíceis


O governo afegão sabe que terá dias difíceis pela frente. ;Haverá algumas batalhas, atentados suicidas e ataques à bomba. Mas nós, das forças de segurança, estamos preparados para substituir as tropas estrangeiras;, comentou o general Mohammad Zahir Azimi, porta-voz do Ministério da Defesa. ;Tenho confiança de que o Exército tem capacidade e habilidade suficientes.; O presidente Karzai elogiou o anúncio de Obama e também demonstrou otimismo. ;A confiança do povo afegão em seu exército e em sua polícia é crescente a cada dia, e a preservação dessa terra é trabalho dos afegãos;, disse.


Najibullah acredita que os EUA não têm outra opção a não ser manter o diálogo com o Talibã, paralelamente à retirada das tropas. ;Se os norte-americanos não estiverem prontos para colocar na agenda de negociação uma completa retirada da Otan, as conversas estarão condenadas ao fracasso;, opina o ex-chanceler.
De acordo com Mir, após quase uma década de comprometimento e de tremendos sacrifícios humanos e financeiros, os EUA não poderiam simplesmente abandonar seu país ao caos. Na opinião dele, a remoção imediata de todos os soldados seria o mesmo que a declaração da derrota. ;Isso seria desastroso para a região e para a segurança nacional dos EUA;, comenta o analista de Cabul. A secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, admitiu ontem os contatos com o Talibã. ;Nós acreditamos que uma solução política... é possível;, destacou, hesitante.

;Apenas um passo simbólico;

Por meio de um comunicado, o Talibã desqualificou o plano americano de retirada de tropas. ;Consideramos esse anúncio, que retira 10 mil soldados este ano, como um passo simbólico, que jamais vai satisfazer a comunidade internacional, farta da guerra, ou o povo americano;, afirmou a milícia fundamentalista islâmica. O grupo acusa os Estados Unidos de ;repetidamente dar falsas esperanças para sua nação sobre o fim da guerra e fazer afirmações sem fundamento sobre uma vitória;.

Consenso

;A estabilidade no Afeganistão dependerá não apenas do processo de paz, mas também de um consenso regional sobre o país. Atores regionais, como o Paquistão, o Irã, as repúblicas da Ásia Central, a Rússia, a Índia e a Arábia Saudita, devem estar convencidos de que a estabilidade no Afeganistão é um interesse comum. Mas esse diálogo regional ainda não começou.;

; Haroun Mir,
cofundador e diretor do Centro para Pesquisa e Estudos de Política do Afeganistão (em Cabul)

Desilusão

;A estratégia de retirada do Afeganistão se baseia na transferência de responsabilidade da segurança para o governo afegão. O presidente Hamid Karzai sustenta que suas forças estariam prontas a assumir
essa responsabilidade até
2014. Mas tal afirmação
é vazia. Karzai parece desiludido com os EUA e, por isso, tenta
se aproximar do Paquistão
e negociar com o Talibã.;

; Najibullah Lafraie,
ministro das Relações Exteriores do Afeganistão entre
1992 e 1996



ARTIGO

Negociando com o Talibã


Amin Saikal

Os presidentes Hamid Karzai e Barack Obama chegaram a um ponto de desespero em relação a encontrar uma fuga para sua vulnerabilidade crescente no Afeganistão. O líder afegão sente o calor, à medida que se aproxima o início da retirada das tropas americanas, no próximo mês. O presidente dos EUA tem perdido apoio da opinião pública e força financeira para prosseguir com a guerra. O caminho escolhido foi abrir o diálogo de paz com o Talibã e seus afiliados, após combatê-los como terroristas durante uma década. Essa abordagem pode funcionar?
Não é a primeira vez que o governo de Karzai e seus apoiadores internacionais ; os EUA, em particular ; têm contactado alguns elementos do Talibã para conversas de paz. Encorajado pelo principal simpatizante do Talibã, o Paquistão, no início de 2003 Karzai e o então embaixador americano no Afeganistão, Zalmay Khalilzad, instaram o Talibã a depôr suas armas e a negociar um acordo. No entanto, o Talibã sempre tem condicionado o diálogo com Karzai à retirada de forças estrangeiras.

Os EUA e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) não estão em melhor posição agora para trazer o Talibã à mesa de negociações. Eles nem sequer asseguraram um parceiro crível no terreno, à medida que o governo de Karzai provou-se corrupto, disfuncional e impopular, nem mesmo conseguiu marginalizar o Talibã ou reconstruir o Afeganistão da forma necessária para dar confiança ao povo de que não será vendido, no fim das contas. O governo Karzai, os EUA e seus aliados têm desperdiçado inúmeras oportunidades, ao buscar objetivos altruístas e egoístas, prestando pouco ou nenhum atenção ao conselho e às recomendações daqueles que entendem bem da complexidade do Afeganistão e de sua vizinhança, tanto em termos históricos quanto contemporâneos. Eles têm se contentado em escutar a si mesmos e a alguns especialistas ocidentais e afegãos que, como muitos governos e ONGs, têm transformado o conflito do Afeganistão numa indústria para a autopromoção e o autoenriquecimento. Inúmeros estudos têm sido compilados por tais especialistas e organizações sobre como reformar aspectos da sociedade e da política afegã e sobre como lidar com a dinâmica regional do conflito. A maior parte desses relatórios têm sido jogados à poeira nas prateleiras de vários ministérios e instituições do governo, em Cabul, ou têm pouca relação com a realidade no país.

A liderança de Karzai e seus aliados internacionais têm frequentemente apresentado sua posição em termos da promoção do bem-estar, da segurança e da prosperidade do poo afegão. Em termos práticos, a maior parte da população do Afeganistão continua a viver na pobreza abjeta, colocando o país no pé da lista dos países mais pobres do mundo. Paradoxalmente, uma pequena nova classe de ricos tem surgido. Essa nova classe é composta pela família de Karzai, por autoridades do governo, traficantes de drogas, megaprodutores de ópio e alguns ex-comandantes mujahedine que combateram a ocupação soviética na década de 1980. Apoiada por vários benfeitores expatriados, essa classe apresenta a face moderna do Afeganistão. Tem ligações internacionais, mas permanece atada à rotina diária dos afegãos comuns, cujo senso de insegurança, imprevisibilidade e empobrecimento continua.

A maioria dos afegãos, incluindo muitos da etnia pashtun ; da qual o Talibã, Karzai e seus asseclas pertencem ;, não querem devolver o poder ao Talibã. As mulheres e os cidadãos não pashtuns, que formam a maioria da população, sofreram terrivelmente sob a ditadura altamente discriminatória e draconiana do Talibã, entre 1996 e 2001. A maior parte deles teme que qualquer acordo de partilha de poder possa levar a milícia ai poder em semanas, dada a profunda fraqueza do governo Karzai. A sociedade afegã é multifacetada, e se um pacto não tiver o suporte do amplo espectro social, a simples perspectiva de um acordo pode compelir muitos afegãos, especialmente os não-pashtuns, a pegar em armas. Eles poderiam esperar o apoio de vários atores regionais, desde o Irã à Rússia e à Índia, já que nenhum desses países gostaria que o Paquistão reconquistasse a influência que tinha quando o Talibã estava no poder. O Exército Nacional Afegão e a polícia, com os quais Karzai e Obama esperam contar para implementar um acordo com o Talibã, poderiam facilmente se desintegrar, na busca do conflito de interesses locais.
Essas condições mostram que não há condições para qualquer acordo negociado realista e significativo com o Talibã. O único meio pelo qual um pacto funcionaria é se o Afeganistão tivesse um governo forte e funcional, e se houvesse consenso regional, com fortes medidas punitivas do Conselho de Segurança da ONU contra quem violasse esse consenso. Estamos muito longe de alcançar essa meta. No entanto, os EUA e seus aliados estão ansiosos para sair do país o mais rápido possível. O Talibã sabe de tudo isso. Eles não precisam vencer a guerra; tudo o que necessitam fazer é permanecer em combate. Até agora, os milicianos mostraram resiliência e capacidade suficientes para tanto. Eles podem aguardar até 2014, quando os EUA e seus aliados encerrarão os combates no Afeganistão.

Amin Saikal, natural de Cabul, é professor de ciência política e diretor do Centro para Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade Nacional Australiana, e autor de Modern Afghanistan: A history of struggle and survival (Afeganistão moderno: uma história de luta e sobrevivência)