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ONU enfrenta o desafio de se adaptar ao novo contexto mundial

A Carta das Nações Unidas foi assinada em 26 de junho de 1945, em San Francisco (Estados Unidos). Trazia, em seu preâmbulo, as determinações de seus 51 países-membros à época: salvar gerações sucessivas da escória da guerra; reafirmar a fé nos direitos humanos, na dignidade e no valor da pessoa; estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito, decorrentes de tratados do direito internacional, sejam mantidos; e promover o progresso social. A criação da Organização das Nações Unidas (ONU) ocorreu quando o planeta começava a tratar as feridas da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto. Quase 66 anos depois, o mundo vive outro contexto, e a ONU atrai críticos vorazes. Muitos creem que o organismo criado para garantir a paz e a segurança internacionais ficou estagnado, atrelado a conceitos não mais intrínsecos ao tempo atual. Na sexta-feira, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, realiza sua segunda vinda ao Brasil. Às vésperas da viagem, que ocorre dias depois de o sul-coreano manifestar seu desejo de ser reeleito para o cargo, o Correio consultou quatro renomados especialistas sobre a importância das Nações Unidas na atualidade.

Professor da Faculdade de Governo da Universidade de Harvard e autor de Worst of the worst: Dealing with repressive and rogue nations (O pior do pior: lidando com nações repressoras e párias), Robert Rotberg acredita que as Nações Unidas mudaram nos últimos anos ao reconhecerem a necessidade de aperfeiçoar sua capacidade de aplicar a paz ; como apregoa o Capítulo 7 da Carta. ;Agora, a organização se incumbe de assegurar os resultados da Responsabilidade para Proteger;, afirma, referindo-se a um conjunto de princípios focados na prevenção do genocídio, dos crimes de guerra, dos crimes contra a humanidade e da limpeza étnica. ;Se fosse criada hoje, a ONU teria uma estrutura diferente;, acredita. Com tantas transformações, Rotberg duvida que haja espaço para o Brasil na função de membro permanente do Conselho de Segurança, ante os inúmeros competidores por uma vaga.

De acordo com ele, a ONU precisa conviver com limitações inatas ao seu propósito. ;Por tratar-se de uma instituição de todos os países, ela precisa respeitar os pontos de vista da minoria dos membros, especialmente na Assembleia-Geral e nas organizações subsidiárias;, opina. Ele vê como grandes desafios o futuro da Responsabilidade para Proteger, o trabalho das forças de paz e a aplicação da estabilidade no Congo, na Somália e no Sudão.

Colega de Rotberg na mesma faculdade em Harvard, o cientista político Graham Alisson lembra que a ONU foi fundada por 51 países e hoje possui 192 Estados-membros, precisando lidar com uma lista crescente de responsabilidades. ;Se considerarmos seu papel em expansão ; do estabelecimento de tribunais criminais para Ruanda e para a ex-Iugoslávia à exigência para que os países garantam a eficiência na segurança do material nuclear ;, a ONU tem mostrado grande capacidade de responder aos desafios globais;, observa. Graham vê as Nações Unidas como um reflexo do ambiente internacional, apontando na direção da reforma de sua estrutura original.

No entanto, ele adverte que é excepcionalmente difícil reformar as estruturas internas das burocracias maiores, especialmente nos setores onde existe uma vasta gama de interesses. ;Qualquer mudança importante e significativa, especialmente no Conselho de Segurança, precisa ser tomada pelos próprios Estados-membros;, observa. Com a hercúlea tarefa de proteger os direitos internacionais de cada país, a ONU também tem a tarefa de remover as ameaças à paz e suprimir atos de agressão. ;Apesar de todas suas falhas, a Carta da ONU deve permanecer como padrão dourado para a paz internacional, a segurança, o progresso social e o desenvolvimento humano;, afirma Alisson.

O cientista político indiano Parag Khanna, autor de How to run the world (Como dirigir o mundo), vê pontos positivos e negativos na imensa estrutura das Nações Unidas. ;Muitos setores são antiquados, ineficientes, lentos ou carecem de recursos. E isso inclui o Conselho de Segurança;, exemplifica. ;Outros órgãos, como o Programa Mundial de Alimentação, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e o Alto Comissariado para Refugiados, trabalham bem e prestam benefícios diários para pessoas de todo o mundo;, acrescenta. Khanna defende que a ONU colabore mais com o setor corporativo e as organizações não governamentais, a fim de viabilizar suas missões internacionais. ;A maioria dos órgãos das Nações Unidas tem sido pouco reativa às oportunidades de parceiras público-privadas;, atesta o indiano.

Líbia e Síria
O papel dúbio do Conselho de Segurança na mediação das crises na Líbia e na Síria conduziu-o à esfera da polêmica. Seus membros aprovaram a resolução n; 1.973, autorizando o uso de força contra as tropas do ditador líbio, Muamar Kadafi. No entanto, não chegou a um consenso para deter a repressão exercida pelo presidente sírio, Bashar Al-Assad. O norte-americano Edward C. Luck, conselheiro de Ban Ki-moon no nível de subsecretário-geral, afirma que organizações regionais forçaram o Conselho a tomar uma atitude enérgica. ;Elas não o fizeram, no caso da Síria, porque temem as consequências de instabilidade no país, dada sua posição no meio de uma das áreas mais tensas do planeta;, diz Luck (leia entrevista abaixo).

No caso da Líbia, Luck relembra que Kadafi referiu-se aos manifestantes como ;baratas; ; os tutsis, durante o genocídio em Ruanda, eram chamados de ;ratos;. ;Kadafi disse que suas forças iriam de casa em casa buscar os rebeldes. O prospecto de um banho de sangue em Benghazi parecia real;, justifica. O conselheiro sustenta que Ban Ki-moon engajou-se em uma diplomacia pessoal e manteve uma saída pacífica em aberto. ;O Conselho tentou impor sanções e ameaçou apelar ao Tribunal Penal Internacional, mas Kadafi não deu a mínima. Agora, o organismo considera uma resolução sobre a Síria, mas não está certo se haverá consenso.;

Pontos de vista
Como o senhor avalia o desempenho de Ban Ki-moon à frente da ONU?

Robert Rotberg,
professor da Faculdade de Governo da Universidade
de Harvard
;Ban Ki-moon está se saindo melhor do que muitos dizem. Ele está tratando os temas certos, atacando os setores de crise corretos e falando da maneira como um secretário-geral deveria falar. Poderia ser mais assertivo em algumas áreas, como os direitos humanos, mas perderia apoio da China e da Rússia. Ban está empurrando (a luta contra) a mudança climática como ninguém fez. Eu acho que ele poderia mostrar uma liderança mais forte em relação à Líbia, à Síria e ao Zimbábue, mas seus instintos de proteger a ONU contra os extremistas no interior da organização são sensíveis.;

Grahan Allison,
professor da Faculdade de Governo da Universidade de Harvard
O secretário-geral fez uma mudança realista, a fim de se concentrar mais na promoção da energia limpa e do desenvolvimento sustentável. Enquanto os países não estão dispostos a unir esforços para combater as mudanças climáticas, o secretário-geral provará ser mais útil ao avançar uma agenda de curto prazo de ações concretas, enquanto empresta sua voz ao que chamou de ;o maior desafio coletivo que encaramos, como uma família humana;. Também foi um oponente vocal dos abusos dos direitos humanos e um crítico voraz das ações brutais tomadas pelos regimes árabes contra seu povo.;