Ele ainda não tinha completado um ano à frente da Igreja Católica quando deu a primeira demonstração do poder que exerceria em todo o mundo no quarto de século seguinte. Era junho de 1979, e Karol Jozef Hubert Wojtyla retornava à sua terra natal para a primeira visita de um papa a um país do bloco soviético. Ao desembarcar em Varsóvia, João Paulo II ajoelhou-se e beijou o chão %u2014 gesto que repetiria outras dezenas de vezes, enquanto a saúde lhe permitiu, em todos os países que visitou. Depois, reuniu mais de 300 mil fiéis na capital polonesa para declarar que a religião não podia ser simplesmente varrida da história de seu país por um regime.
A visita provocou ondas de choque em Moscou, que desaprovou a autorização dos dirigentes poloneses à viagem de nove dias. A União Soviética tinha razões para olhar com reticência o %u201Cjovem%u201D e popular papa. João Paulo II, que vivera a maior parte da vida até então na Polônia comunista, foi um dos principais incentivadores do sindicato independente Solidariedade, que levou o regime ao colapso. Nos bastidores, atuou com o então presidente americano, Ronald Reagan, contra o comunismo %u2014 comparado por ele ao nazismo, que já havia castigado sua terra natal. Para o teólogo jesuíta Thomas Reese, só essa atuação já fez de João Paulo II o líder mundial mais importante da segunda metade do século 20. %u201CEle mudou o curso da história ao ajudar a derrubar o comunismo e dar um fim à Guerra Fria%u201D, afirma o americano.
Mas a influência se estendeu muito além da política. Carismático e, acima de tudo, diplomático, ele foi pioneiro na aproximação entre a Igreja Católica e outras religiões. Em 1982, recebeu no Vaticano o então líder da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Yasser Arafat, e em 2000, visitou o Muro das Lamentações, em Jerusalém, onde colocou um bilhete com um pedido de perdão pelos séculos de maus-tratos dos cristãos contra os judeus. %u201CJoão Paulo II foi o primeiro papa a entrar em uma sinagoga%u201D, lembra o professor de Teologia Luís Correa Lima, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Para Lima, é um caminho sem volta. %u201CDepois dele, e com a globalização, não há mais espaço para posições sectárias.%u201D
Para reaproximar o Vaticano e o mundo, João Paulo II não se importou em gerar desconforto dentro da Santa Sé e pedir perdão pelos erros e omissões da Igreja ao longo de sua história. Foram mais de 100 retratações, em especial aos judeus, aos negros, aos índios e às mulheres. %u201CEu, papa da Igreja de Roma, em nome de todos os católicos, peço perdão por todos os males causados a todos os não católicos no decurso da história turbulenta desses povos%u201D, disse Wojtyla em um dos seus mea-culpas. Lima acredita que os pedidos de perdão foram positivos e contribuíram para contradizer a autoimagem %u201Ctriunfalista%u201D da Igreja. %u201CNa época, isso trouxe muito entusiasmo, mas mais importante que o perdão é atender as demandas das mulheres e da sociedade hoje%u201D, observa.
O ímpeto diplomático levou João Paulo II a 129 países nos quase 27 anos de papado. O papa peregrino visitou Cuba, onde celebrou uma missa assistida até por Fidel Castro. Percorreu a África e veio quatro vezes ao Brasil %u2014 em 1980, 1982, 1991 e 1997. Na última visita, reuniu 2 milhões de pessoas no Rio de Janeiro para reafirmar os valores da família e condenar enfaticamente o aborto e o divórcio. Mas nem todas as viagens foram boas para sua imagem. Apesar da mensagem que levou ao Chile sob ditadura, em 1987, João Paulo II foi muito criticado por ter apertado a mão do general Augusto Pinochet.
Contradições
Mesmo assumindo algumas posturas liberais, como a de colocar o ecumenismo no centro de seu papado, João Paulo II não pode ser considerado exatamente um progressista. O pontífice foi extremamente conservador ao lidar com os temas da Igreja. Deixou de lado assuntos polêmicos, como a proibição da camisinha, a ordenação de mulheres e o casamento homossexual, e sempre optou por nomear bispos mais tradicionalistas e extremamente obedientes. Durante seu papado, movimentos conservadores como a Opus Dei e o Regnum Christi (legionários de Cristo) ganharam espaço. Correntes mais liberais, como os jesuítas e a Teologia da Libertação, tiveram seu trabalho dificultado pela Santa Sé, especialmente pela Congregação para a Doutrina da Fé, presidida na época pelo cardeal Joseph Ratzinger %u2014 hoje, papa Bento XVI.
A saúde frágil marcou os últimos anos de papado. Baleado pelo turco Mehmet Ali Agca, em 1981, na Praça de São Pedro, João Paulo II foi operado e teve 30cm do intestino retirados. Onze anos depois, teve de extrair um tumor benigno, também do intestino. Em 1993, sofreu fratura no fêmur direito e ganhou uma prótese. O estado de saúde foi agravado pelo mal de Parkinson %u2014 que nunca foi confirmado pelo Vaticano. Aos 84 anos, depois de ser hospitalizado duas vezes com problemas respiratórios e outras complicações, morreu como o papa mais carismático e popular na história recente da Igreja.