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Brasiliense relata tensão na Líbia, onde vive há duas décadas

De gestos delicados, voz baixa e com muita simpatia, a odontóloga brasiliense Caroline Mohamed, que há 20 anos adotou a Líbia para viver, disse ontem ao Correio que o povo líbio pode finalmente falar. Depois de dois dias de uma intensa jornada de retorno ao Brasil, ela relatou seus últimos dias no país do ditador Muamar Kadafi e admitiu ter ido às ruas para celebrar a conquista de Benghazi (leste). Caroline e os seis filhos ; quatro meninas e dois meninos, com idades entre 4 e 17 anos ; integravam um grupo de brasileiros resgatados em Benghazi, a primeira cidade dominada pelos manifestantes. Casada com um líbio, diretor da construtora Queiroz Galvão, ela preferiu não falar sobre o marido. ;Temos medo porque ele ainda está na lá (na Líbia);, explicou-se.

Quatro dias antes de deixar Benghazi, Caroline e os filhos foram para um hotel, onde aguardaram o momento de embarcar para o Brasil. No sábado, o grupo iniciou a longa viagem de volta: foram 17 horas de navio rumo à Grécia e mais um voo até o Recife. Ontem, por volta das 13h, a família chegou ao Aeroporto Internacional Juscelino Kubitchek, em Brasília. Enquanto espera a situação política na Líbia melhorar, para reencontrar-se com o marido, Caroline ficará hospedada na casa do pai, na Asa Norte.

Antes mesmo dos conflitos, a odontóloga já tinha uma viagem marcada para o Brasil. Ela está concluindo uma especialização sobre saúde bucal na Universidade de Brasília (UnB) e defenderá sua monografia nos próximos dias. No estudo, Caroline compara o estilo de vida entre as famílias brasileiras migrantes e as líbias em Benghazi. Por conta do trabalho do marido, há três anos, a brasiliense trocou a capital, Trípoli, por Benghazi. Na segunda maior cidade do país, ela trabalha em uma clínica. A odontóloga relata que, nos primeiros 10 dias de manifestações, toda a família ficou bastante assustada com os barulhos dos tiros, que faziam vibrar as janelas.

Segundo Caroline, o momento de maior medo coincidiu com as primeiras notícias de que o regime bombardearia Benghazi. Foi ali que ela e o marido decidiram abandonar o país com os filhos. ;Mas quando eu vi que os militares disseram que não iriam atirar e começaram a se ejetar e derrubar os aviões, soube que estávamos em segurança;, afirmou. Mesmo assim, o plano foi mantido. A brasileira relatou que serviços básicos ; como hospitais e escolas ; não foram interrompidos. ;As pessoas lá não passam fome. Cada família recebe seu pão, seu franguinho e seu arroz. E pronto. Mas elas querem a liberdade de dizer o que pensam;, contou, acrescentando: ;Por defenderem esse direito estão pagando um preço muito alto;.

Os filhos não queriam deixar o país. ;Por um bom período da viagem, eles estavam com raiva de mim;, lembrou, em tom de brincadeira. Caroline relatou que as filhas mais velhas acompanhavam tudo o que ocorria e trocavam informações com os colegas da escola sobre a revolta. O pai das meninas teve de ir atrás das filhas para evitar que participassem das manifestações e chegou a impedi-las de sair de casa. ;Sinto em não ter dado o sangue dos meus filhos pela revolução, mas eles são tudo o que eu tenho;, comentou.

Importância
A brasilense e o marido se conheceram quando estudavam na UnB, na década de 1990. O namoro foi breve. Já convertida ao islamismo, Caroline se casou. Logo depois, mudaram-se para a Líbia. Os seis filhos têm dupla cidadania ; líbia e brasileira. Conversam em português e árabe com os pais, além de falarem inglês. ;Minha filha mais velha já está falando alemão;, disse.

Para Caroline, o que ocorre hoje na Líbia é muito importante, porque, segundo ela, a população voltou a ter orgulho de sua pátria. Porém ela lamentou que muito sangue tenha sido derramado. Segundo ela, inspirados pelas revoltas na Tunísia e no Egito, os jovens puderam seguir o mesmo caminho. ;Acho que, se a Líbia conseguiu, outros países também vão ter coragem de lutar, porque em nenhum outro a revolta foi tão sangrenta;, destacou. A odontóloga disse acreditar que contar tudo o que viu em Benghazi é uma maneira de ajudar a Líbia. Por isso, ela já pensa em organizar no Brasil uma manifestação de apoio aos países árabes.