O discurso de Hosni Mubarak causou mais dúvidas que certezas na comunidade internacional, especialmente nos Estados Unidos. Algumas horas depois de o presidente egípcio dizer que permaneceria no cargo, mas passaria parte de suas atribuições ao vice-presidente, Omar Suleiman, Barack Obama fez um pronunciamento afirmando que a transferência de alguns poderes não representa uma mudança ;crível; e ;concreta;.
;O Egito deve explicar rapidamente as mudanças políticas desta quinta-feira;, disse o mandatário norte-americano. ;O povo egípcio foi informado que ocorreu uma transição de autoridade, mas ainda não está claro se esta transição é imediata, significativa ou suficiente. Muitos egípcios ainda não se convenceram de que o governo é sério em relação a uma transição genuína em direção à democracia, e é responsabilidade do governo falar claramente ao povo egípcio e ao mundo;, completou.
Outro presidente a se pronunciar sobre o discurso de Mubarak foi o francês, Nicolas Sarkozy. Segundo ele, era ;inevitável; que o colega egípcio delegasse alguns poderes a seu vice. ;Eu desejo de todo meu coração que o Egito crie as estruturas e os princípios que vão ajudá-los a encontrar o caminho para a democracia e não uma outra forma de ditadura, ditadura religiosa, como a que aconteceu no Irã.;
Mais cedo, Obama aproveitou um discurso que daria em Marquette, Michigan, para, em meio à expectativa pela saída do colega egípcio, reafirmar a já conhecida posição americana. ;Quero que todos os egípcios saibam que a América vai continuar a fazer tudo o que puder para apoiar uma transição ordenada e genuína para a democracia no Egito;, disse, acrescentando que Washington está acompanhando de perto tudo o que ocorre no país árabe.
Evocando uma de suas palavras favoritas, Obama disse que um momento de transformação está em curso porque o povo do Egito deseja ;mudança;. ;O que está absolutamente claro é que estamos testemunhando o desenrolar da história;, disse. Segundo o porta-voz da Casa Branca, Robert Gibbs, antes de sair de Washington, Obama conversou com seu assessor de segurança nacional, Tom Donilo, sobre a situação no Egito, e ainda acompanhou pela televisão, durante o voo para Michigan, todas as novidades da ;situação mutável; do Cairo. O discurso de Mubarak também foi visto pela televisão, a bordo do avião presidencial Air Force One.
A chefe da diplomacia europeia, após conversar com o chanceler egípcio, Aboul Gheit, também reiterou a disposição do bloco em ajudar a transição no país árabe com ;um pacote de medidas;. ;Reiterei que, não importa o que aconteça nas próximas horas e dias, a União Europeia está disposta a ajudar a construir uma democracia profunda que levará estabilidade ao povo egípcio;, afirmou Ashton.
Confusão
Mais cedo, o diretor da CIA (agência de inteligência dos EUA), Leon Panetta, chegou a afirmar que havia ;uma grande probabilidade; de renúncia do ditador egípcio. A declaração de Panetta foi feita durante uma audiência na Câmara dos Deputados, mas, assim que saiu da sessão, ele tentou minimizar seu impacto, dizendo que ;nada estava confirmado;. ;Nós não conseguimos confirmar que ele (Mubarak) vá fazer isso (renunciar), então estamos monitorando a situação;, disse à agência Bloomberg. O porta-voz do diretor já tinha tentado escl arecer à imprensa que a declaração de Panetta tinha por base informações da própria mídia, e não da inteligência americana.
Também antes do pronunciamento de Mubarak, o subsecretário de Estado, James Steinberg, ressaltou, em um discurso no Congresso, a importância de, qualquer que seja o destino do governo egípcio, que este honre as três décadas de paz com Israel, e a ;longa e profunda aliança; com os americanos. ;O Egito está passando por uma transição notável. Há muito em jogo. É fundamental que o Egito respeite os Acordos de Camp David e cumpra com o histórico tratado de paz com Israel;, afirmou. ;Queremos que o país siga mostrando uma clara liderança responsável na região.;
A expectativa de que Mubarak pudesse renunciar fez com que participantes do Fórum Social Mundial, no Senegal, chegassem a comemorar o fim do regime ditatorial. ;A queda de Mubarak não será um fim em si, mas um começo;, disse o economista egípcio Samir Amin, durante um debate.
Militares podem decidir o impasse
Tatiana Sabadini
Em 44 anos, o Conselho Supremo das Forças Armadas do Egito reuniu-se apenas três vezes. Em 1967, por conta da guerra dos Seis Dias. Em 1973, pela guerra de Yom Kipur ; ambas contra Israel. E ontem, por conta do levante popular contra o regime. Depois de 17 dias de manifestações pela saída imediata do presidente Hosni Mubarak, o Exército resolveu adotar uma postura sobre a crise e reafirmou sua obrigação de ;proteger a vontade do povo;. As instituições militares sempre foram um eixo no sistema de poder desde a queda da monarquia, nos anos 1950, e agora não deve ser diferente. Depois do discurso do presidente, na noite de ontem, o Conselho Supremo ainda deve debater qual será o próximo passo da instituição para debelar a crise.
Quando o povo foi às ruas do Cairo em busca de reformas democráticas, os militares permaneceram atentos, mas preferiram se manter distantes. Ontem, a instituição decidiu, por fim, tomar posição. Um dos comandantes do Exército, o general Hassan Al-Roweny, subiu em um palanque na Praça Tahrir, entoou o Hino Nacional com os manifestantes e afirmou que ;todas as demandas da população; seriam atendidas. A reunião do conselho também mostrou o peso dos militares na crise. Ao mesmo tempo, os chefes das Forças Armadas divulgaram um comunicado na televisão, no qual garantiam que ;em apoio às demandas legítimas da população, o Exército continuará se reunindo para examinar medidas a serem tomadas para proteger a nação e as ambições do grande povo egípcio;.
O hiato dos militares sobre qual posição tomar na crise pode ter sido causado por indecisão. De um lado, as Forças Armadas poderiam tentar manter um regime dirigido por um homem formado em seus princípios. Desde a queda da monarquia, em 1952, todos os presidentes do Egito foram oficiais militares. Por isso, a instituição tem privilégios e, ao mesmo, tempo influência política.
Por outro lado, apoiar as ;demandas do povo; pode deixar as Forças Armadas em boa posição com a comunidade internacional, especialmente com os Estados Unidos. O governo americano contribui com mais de US$ 1 bilhão por ano para o orçamento militar egípcio. A influência estrangeira não se resume a dinheiro: os soldados egípcios são treinados por tropas internacionais. Por isso, a cada dia se fortalece a expectativa de que um governo militar assumir o comando do país.
Transição
A possibilidade de as Forças Armadas assumirem a transição causou apreensão entre os manifestantes. O poder militar é forte culturalmente. Há seis décadas, foram os militares que puseram fim a um século e meio de monarquia e alinharam o Egito ao nacionalismo árabe. Nesse período, não mediram esforços para criar uma imagem heroica e moderna da instituição. Embora derrotados por Israel em duas guerras, não perderam o respeito da população.
Mesmo com o respaldo dos presidentes militares, as Forças Armadas parecem não se envolver diretamente no governo. Aparecem acima da linha, ou seja, longe da corrupção que mina as instituições do Estado, das falhas na economia e dos erros de Mubarak. Além disso, os militares tentam manter-se distantes da repressão aos descontentes.
Rodízio de fardados
Desde que os militares do Movimento dos Oficiais Livres depuseram o rei Farouk, em 1952, e proclamaram a República, em 1953, quatro oficiais do Exército sucederam-se como presidentes do Egito:
Muhammad Naguib
General, ficou no poder apenas até 1954, quando foi deposto pelo núcleo nacionalista do movimento.
Gamal Abdel Nasser
Coronel, foi o artífice do golpe contra o rei e assumiu formalmente a Presidência em 1956. Decretou a nacionalização do Canal de Suez, iniciando uma crise que o alinhou com a União Soviética, contra o Ocidente, no contexto da Guerra Fria. Tornou-se patriarca do nacionalismo árabe e comandou a coalizão derrotada por Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967. Mesmo desprestigiado, continuou no cargo até sua morte, em 1970.
Anuar Sadat
Camarada de farda de Nasser e seu confidente pessoal, era o vice-presidente e assumiu o comando do país com a morte do líder. Em 1973, liderou outra coalizão árabe na Guerra do Yom Kippur, igualmente vencida por Israel. Em 1977, supreendeu o mundo viajando a Jerusalém para negociar a paz e discursar para a Knesset (Parlamento). Os Acordos de Camp David, firmados em 1979 nos EUA, sob patrocínio do presidente Jimmy Carter, resultaram na devolução para o Egito da Península do Sinai, ocupada pelos israelenses desde 1967. Em outubro de 1981, em meio a uma parada militar, Sadat foi fuzilado por oficiais ligados a um movimento extremista islâmico.
Hosni Mubarak
Comandante da Força Aérea, era vice-presidente desde 1975 e assumiu o lugar de Sadat. Tornou-se o governante mais duradouro do país desde Muhammad Ali Pasha, que fundou no século 19 a dinastia encerrada com a deposição do rei Farouk, em 1952. Mubarak consolidou a guinada pró-Ocidental iniciada com seu antecessor, alinhou-se firmemente aos EUA e transformou-se, ao longo das três décadas de governo, em um dos avalistas do processo de paz entre Israel e os palestinos. Funcionou também, ao lado da dinastia saudita, como um dos contrapesos à crescente influência do Irã no Oriente Médio.