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Mubarak contraria rumores, mas transfere poderes para o vice, Omar Suleiman

Multidão reunida na Praça Tahrir reage com fúria e promete manter a "revolução"

Nadeem Abdel Gawad ainda não acreditava no que tinha acabado de ouvir. Nos últimos dias, o estudante de 20 anos presenciou um manifestante tombar morto e se viu ferido na perna. Às 19h15 de ontem (23h15 no Cairo), Nadeem experimentava uma mistura de ódio e de frustração, sentimentos compartilhados por pelo menos 1 milhão de egípcios que tomaram a Praça Tahrir, no centro do Cairo. Durante a entrevista ao Correio, abriu o microfone de seu celular. ;Egito, morreremos por ti! Egito, morreremos por ti!”, gritava a multidão em Tahrir. Foi a resposta imediata ao discurso do presidente Hosni Mubarak, por meio do qual ele descartou a renúncia, desafiou a comunidade internacional e delegou parte dos poderes ao vice, Omar Suleiman. ;O pronunciamento de Mubarak não vale nada. É uma besteira absoluta;, afirmou Nadeem. ;Ele não tem que delegar o poder a ninguém. Só tem que sair. Renunciar. As pessoas não acreditam em Suleiman;, acrescentou.

No 17; dia da chamada ;revolução;, Mubarak pôs fim aos rumores que sinalizavam a entrega do poder ao exército. Até mesmo a Agência Central de Inteligência (CIA) tinha dado a renúncia como certa. Os boatos ganharam força após a reunião de Mubarak com Suleiman e com o primeiro-ministro, Ahmed Shafiq. Em um comunicado oficial, o exército anunciou que as demandas da população seriam atendidas ;nesta noite;.

No discurso de 15 minutos, o mandatário ; visivelmente nervoso e enérgico ; demonstrou a soberba de um faraó e, ao mesmo tempo, adotou um tom paternalista. ;Falo com vocês do fundo do meu coração, como um pai que fala aos filhos. Eu tenho orgulho de vocês, como filhos de uma nova geração do Egito, comprometida com uma vida melhor;, declarou Mubarak. ;O sangue de seus mártires não será em vão;, garantiu. Ele jurou que não será tolerante na punição aos autores de crimes contra os civis. ;Eu digo a todas as famílias das vítimas inocentes, que estou em dor e com o coração partido;, admitiu.

Polêmica
Ainda no início do discurso, Mubarak fez declarações polêmicas. Enviou um recado indireto ao governo dos Estados Unidos. ;Não vejo embaraço e objeção em escutar os jovens de meu país e em responder a eles. Mas o maior embaraço e vergonha, e algo que nunca fiz, nem nunca farei, é escutar imposições externas, sejam quais forem suas fontes ou justificativas;, atacou. Quase três horas antes, o presidente norte-americano, Barack Obama, tinha praticamente referendado a transição política imediata no Egito. ;Nós estamos testemunhando o desenrolar da história no Egito;, disse, durante evento em Michigan. Sameh Shoukry, embaixador do Egito nos EUA, assegurou ontem que Mubarak já não tem mais poder. ;O presidente indicou claramente que estava transferindo toda a sua autoridade presidencial para o vice-presidente;, anunciou. ;O chefe de Estado de direito é Mubarak, e o chefe de Estado de fato é Suleiman;, emendou. Opositores consultados pelo Correio garantiram que a Constituição não prevê a transferência integral de poder ao presidente.

Mubarak se disse ontem ;consciente dos perigos dessa encruzilhada; e admitiu que o Egito enfrenta tempos difíceis. ;Eu pensei em transferir os poderes do presidente para o vice-presidente, de acordo com a Constituição. Estou muito certo de que o Egito atravessará essa crise: o desejo do povo não será quebrado, e a nação ficará de pé novamente;, declarou. Mais uma vez, expressou o compromisso em proteger a Constituição e o povo, e transferir o poder para quem for eleito nas ;eleições livres e transparentes; de setembro. ;Quando Mubarak falou sobre remover a lei de emergência e a realizar eleições livres, ele foi inconclusivo;, desabafou Nadeem. Para o manifestante, os pedidos de desculpas do presidente são tardios. ;Ele é um criminoso, matou e tem que ser levado ao tribunal;, acrescentou o opositor, que jurou não deixar a Praça Tahrir até que Mubarak saia.

Insistência
A insistência de Mubarak em permanecer no poder deixa o país à beira do caos e da imobilidade. Ontem, uma greve geral gigantesca contou com a participação de médicos, de funcionários do sistema de transporte público e de milhares de servidores da indústria petrolífera. ;O país vai explodir e queimar amanhã (hoje);, alertou o estudante Mahmud Abu Sharkh, de 21 anos. ;As pessoas estão realmente furiosas aqui. Milhares de egípcios querem tomar o controle da emissora estatal de TV. Dezenas de milhares estão marchando rumo ao palácio presidencial e pelo menos 300 mil dormem em Tahrir;, contou à reportagem, por volta das 21h20 de ontem (hora de Brasília).

Nadeem Abdel Gawad, estudante de 20 anos, fala direto da Praça Tahrir (Cairo), após o discurso de Mubarak desta quinta-feira (10/2) (em inglês)


Por sua vez, a jornalista independente Aliaa Hamed, de 27 anos, diz ter medo do que possa ocorrer. ;Se Mubarak tivesse feito essa oferta desde o início, teríamos aceitado. Mas depois de tanta destruição de mártires, não acho que a aceitaremos;, disse. Ela contou que 42% da população vive abaixo da linha de pobreza e vê o risco de essa parte da sociedade se rebelar.

ANÁLISE DA NOTÍCIA
Dois lados sem comando

Silvio Queiroz

Quando Hosni Mubarak encerrou seu discurso, um aspecto central da crise no Egito ficou à mostra: nem o regime nem a oposição demonstram ter uma liderança clara, uma linha de comando reconhecível.

O presidente anunciou que fica até entregar o poder ao sucessor que deve ser eleito em setembro. Mas, para quem dava sozinho as cartas pelo menos até a virada do ano, sua posição agora parece frágil, mais do que nunca dependente da lealdade das Forças Armadas.

Os militares, por sua vez, deram ao longo do dia sinais contraditórios. O Alto Conselho das Forças Armadas declarou-se em sessão permanente ;para discutir as medidas; a serem tomadas ;para a salvaguarda da pátria;. Declararam apoio, vagamente, às ;reivindicações legítimas do povo;, que pede a saída imediata de Mubarak. O comandante do Exército, Hassan Rowhani, chegou a discursar na Praça Tahrir e prometer aos manifestantes que suas demandas seriam atendidas ;nesta noite;.

Quanto à multidão acampada na praça, falta-lhe uma direção clara, uma sigla ou uma personalidade capaz de catalisar os sentimentos e arquitetar o assalto final ao poder. Movimentos espontâneos dificilmente sobrevivem à determinação organizada de um regime autoritário estabelecido, como demonstrou ; de maneira especialmente trágica ; o massacre dos jovens chineses na Praça da Paz Celestial, há 22 anos.