A liderança do Partido Nacional Democrata, legenda do presidente Hosni Mubarak, renunciou ontem, deixando o secretariado-geral da agremiação nas mãos de Hossam Badrawi, pertencente à ala liberal do PND. Entre os políticos que abandonaram os cargos está Gamal Mubarak, filho e herdeiro político do ditador. Pela legislação do país, com a decisão, ele se torna inelegível, garantindo ao povo egípcio que ele não vai participar das eleições de setembro, conforme o presidente havia prometido.
Os Estados Unidos saudaram a decisão. ;Vemos isso como um passo positivo em direção a uma mudança política que será necessária, e esperamos outros passos;, informou um funcionário do governo de Barack Obama à agência de notícias AFP. O anúncio da saída de Gamal provocou falsas expectativas nas ruas do Cairo. As primeiras informações divulgadas em sites de relacionamento e em blogs de jornalistas afirmavam que o próprio ditador havia abandonado a liderança do PND, o que não ocorreu na verdade.
O gesto da liderança do PND deixou dúvidas sobre a real intenção por trás da renúncia. Alguns analistas acreditam que é uma forma de Mubarak tentar acalmar a população, deixando claro que se dispõe a iniciar um processo de mudanças democráticas e, principalmente, tirando do pleito de setembro o nome de Gamal. Já outros pensam que a saída dos políticos seja um sinal de que Mubarak perde força em seu partido. Alguns relatos, inclusive, davam conta de que o filho do presidente fora afastado da liderança contra sua vontade.
De uma forma ou outra, Hosni Mubarak está cada vez mais isolado. Tudo indica que o alto comando do país esteja em busca de uma solução para a crise política que o afaste do poder de forma honrosa. De acordo com o jornal The New York Times, nos bastidores, o vice-presidente, Omar Suleiman, tenta costurar com o Exército uma estratégia para iniciar, imediatamente, as reformas democráticas no Egito.
Em entrevista ao jornal, funcionários do alto escalão do Egito e dos Estados Unidos, que não se identificaram por motivos de segurança, afirmaram que Mubarak poderia viajar para a Alemanha, com o pretexto de se submeter a exames que faz todos os anos, ou se instalar no balneário de Sharm el Sheihk, onde fica sua casa. Sem ser expulso do comando do país, o presidente se afastaria, permitindo que Suleiman iniciasse a abertura do sistema político, limitando os mandatos presidenciais e adotando princípios democráticos antes das eleições de setembro. ;Nada disso pode acontecer se Mubarak permanecer no centro do processo;, diz o texto do jornal, citando um alto dirigente anônimo do governo americano. ;Mas isso não quer dizer necessariamente que o presidente deixe o cargo de imediato;, afirmou a fonte.
Renúncia
Os líderes da oposição insistem que não negociam com Suleiman enquanto Mubarak continua em cena. Ao contrário do vice, eles não querem saber de saída honrosa, e preferem que o presidente renuncie. O problema é que, internamente, a avaliação do governo é que uma saída definitiva de Mubarak antes de setembro poderia trazer problemas constitucionais.
O vácuo no poder também foi questionado ontem pela chanceler alemã, Angela Merkel, que lidera um encontro sobre segurança internacional em Munique. Para ela, é preciso respeitar o período de transição. ;Eleições precoces no começo do processo de democratização é provavelmente a abordagem errada;, afirmou, refletindo o medo entre os líderes europeus de que a pressa para tirar Mubarak do poder acabe deflagrando crises políticas ainda mais graves.
A secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, que também participa do evento na Alemanha, afirmou que, embora apoie a transição para a democracia no Egito, prevê que o processo, no Oriente Médio, corre ;riscos de caos;. ;Claro, há riscos inerentes a essa transição. Isso pode engendrar o caos, e uma instabilidade até pior a curto prazo. Como observamos no passado, a transição pode levar a uma regressão, com um outro regime tão autoritário quanto;, ponderou. Em um claro recado ao povo egípcio, ela lembrou que, enquanto em alguns países o processo avança rapidamente, como na Tunísia, em outros ; no caso, o Egito ;, ele pode ser mais demorado.
Para exemplificar os riscos associados à transição, Hillary citou a tentativa de assassinato sofrida pelo vice-presidente Omar Suleiman no sábado. De acordo com relatos ; negados oficialmente pelo governo ;, homens armados atiraram contra o carro de Suleiman, resultando na morte de dois guarda-costas. Segundo a secretária de Estado dos EUA, o fato mostra ;muito claramente os desafios do impasse político que paralisa o Egito;. Até agora, 300 pessoas morreram e 4 mil ficaram feridas, nas contas da Organização das Nações Unidas.
Apego
Mubarak trabalhou normalmente ontem, reunindo-se com o primeiro-ministro Ahmad Shafic, o governador do Banco Central e os ministros do Petróleo e das Finanças. A pauta foi a crise econômica, agravada pelo ataque a um gasoduto que abastece Israel e Jordânia (leia abaixo). ;A reunião é uma prova de que Mubarak não vai deixar o posto e quer mostrar ao povo que ainda está lá;, lamentou o líder do movimento oposicionista Kefaya, Georges Isahq.
Preocupado com um possível aumento da violência no país, o opositor egípcio de maior visibilidade, o Nobel da Paz Mohamed El Baradei, afirmou que deseja conversar com o Estado Maior, para ;organizar uma transição sem derramamento de sangue;. Ele e o chefe da Liga Árabe, Amr Mussa, muito popular em seu país, não excluíram a possibilidade de se candidatar à sucessão de Mubarak.
Sem dar trégua ao ditador, os manifestantes continuaram na Praça Tahrir. Acampada em tendas ou simplesmente sentada no chão, ignorando o toque de recolher, a população pedia a saída do presidente, a dissolução do Parlamento, a implementação de um governo de transição e o término do estado de emergência, em vigor desde 1981. Na madrugada, dezenas de manifestantes procuraram impedir que os tanques do Exército deixassem a praça, temendo que militantes pró-Mubarak viessem confrontá-los. Quando ouviram os roncos dos motores, correram em direção aos veículos, sentando-se ao redor deles e suplicando aos militares para que ficassem.
Prejuízo milionário
Na primeira reunião com o novo gabinete ministerial, o presidente do Egito, Hosni Mubarak, mostrou-se preocupado com a economia do país, que sofreu mais um golpe ontem com a explosão de um gasoduto em Sheikh Zuwayed, a 10km da Faixa de Gaza, que abastece Israel e Jordânia. O ataque, interpretado como sabotagem, custará US$ 3,5 milhões por dia.
Após a ação, as autoridades egípcias cortaram o abastecimento nas duas seções em que se divide o duto, uma levando gás à Jordânia e a outra, a Israel. Com a interrupção, foi contido um incêndio de grandes proporções, cuja fumaça podia ser vista da Faixa de Gaza, a 70km. O gás egípcio cobre 80% das necessidades elétricas da Jordânia.
Israel já havia decidido interromper provisoriamente as importações de gás natural egípcio, após consulta entre o premiê Benjamin Netanyahu e o ministro da Infraestrutura do Cairo, Ouzi Landau, em razão dos acontecimentos dos últimos dias, segundo uma emissora de rádio israelense. O Egito, que foi o primeiro país árabe a assinar a paz com o Estado hebreu, em 1979, fornece 40% do gás natural consumido por Israel.
O ataque ao gasoduto somou-se a outro atentado ocorrido também no Sinai egípcio. Pela manhã, a igreja cristã Mar Guiguis explodiu. De acordo com testemunhas, desconhecidos foram vistos a 100m do local, armados e montados em uma motocicleta. Normalmente, os policiais vigiam os locais de culto de cristãos, mas os religiosos afirmaram que não havia qualquer força de segurança em Jar Guiguis. Na televisão estatal, o governador do Norte-Sinai, Abdel Wahab Mabrouk, se negou a admitir o atentado ao templo.