Enquanto simpatizantes do presidente Hosni Mubarak impunham o terror sobre jornalistas e intensificavam os ataques oposicionistas, as autoridades se engajavam num esforço para justificar a batalha campal da véspera. Primeiro foi o polêmico ministro do Interior, Ahmed Shafik, que concedeu uma entrevista à TV estatal e não convenceu. ;Apresento todas as minhas desculpas pelo que aconteceu ontem e será feita uma investigação;, declarou, ao colocar a culpa no ;completo desaparecimento da polícia;. Depois, foi a vez do vice-presidente Omar Suleiman. Ele atribuiu os choques entre aliados e rivais de Mubarak ao ;resultado de um complô;, fomentado no país ou no exterior. Suleiman alertou que atuará com ;mão dura; sobre os protestos.
No início da noite, o próprio presidente falou à jornalista Christiane Amanpour, da rede de TV ABC News. Na primeira entrevista desde o início da crise, em 25 de janeiro, Mubarak repetiu o discurso dos subalternos e acusou a organização islâmica Irmandade Muçulmana pelas mortes. ;Se eu renunciar hoje, haverá o caos (no Egito);, alertou. Mubarak confessou estar ;cansado; de ser presidente. ;Estou muito triste com o que aconteceu ontem. Não quero ver os egípcios lutando entre si;, disse. ;Não me importo com o que as pessoas digam de mim. Estou preocupado com o meu país, eu me importo com o Egito;, acrescentou, antes de abordar a reeleição. ;Eu não pretendia concorrer novamente. Nunca tive a intenção de tornar Gamal presidente depois de mim.;
O peso da ;mão dura; prometido pelo vice já era sentido ontem por ativistas dos direitos humanos e por repórteres. ;Estamos sofrendo uma perseguição sistemática aqui no Egito;, declarou ao Correio Luiz Antônio Araujo. O correspondente do Zero Hora quase foi linchado por uma turba de simpatizantes do regime (leia nesta página). O jornalista sueco Bert Sundstroem estava ontem à beira da morte em um hospital do Cairo, após ter sido esfaqueado. Na tarde de ontem, o produtor da TV pública SVT acabou surpreendido por uma voz em árabe, quando entrava em contato com Bert, para colocá-lo ao vivo. ;O seu homem está detido pelo exército. Bando de filhos da p;, se quiserem recuperá-lo, venham procurá-lo. (...) Está vivo e acordado.;
Resistência
Há três dias acampado na Praça Tahrir, o webdesigner Tarek Shalaby, de 26 anos, esperava um novo ataque durante a madrugada (hora local). ;Estamos mais preparados e mais determinados. Não capitularemos;, garantiu ao Correio, por celular. ;Integrantes do Partido Nacional Democrático (de Mubarak) e marginais apoiados pela polícia receberam dinheiro para lutar contra nós;, denunciou. O manifestante denunciou violações dos direitos humanos contra os jornalistas. ;Muitos jornalistas não conseguiram chegar à praça. Os marginais anotaram os números de telefone e sequestraram alguns deles, para que a comunidade internacional não saiba o que está ocorrendo aqui;, admitiu.
Tarek celebra o fato de as forças opositoras terem recusado a proposta de diálogo feita por Suleiman. ;Só sairemos daqui se o governo entrar em colapso total e imediato. Ainda temos uma lei de emergência, a corrupção e um sistema falido. Reformas não estão sobre a mesa;, ponderou.
Em nota, a Irmandade Muçulmana afirmou que ;rejeita categoricamente qualquer diálogo; e considera Mubarak deposto. ;As pessoas derrubaram o regime, e não há sentido em qualquer diálogo com um regime ilegítimo.; A algumas centenas de metros de Tarek, numa rua próxima à Praça Tahrir, a ativista Ghada Shahbandar confirmou à reportagem que a situação era extremamente volátil. ;Gangues circulam pelas ruas, detêm estrangeiros e sequestram jornalistas;, relatou, ao acusar a polícia de cooperar com os supostos delinquentes. A Casa Branca classificou os ataques a jornalistas como ;totalmente inaceitáveis; e defendeu a imediata libertação dos profissionais.
ANÁLISE DA NOTÍCIA
Ilegítimo e sem moral
O presidente do Egito, Hosni Mubarak, conseguiu minar qualquer resquício de legitimidade de seu governo, indispor-se com os Estados Unidos ; um aliado histórico ;, perder a confiança e o respeito do Exército, e confirmar a alcunha de ditador. Se o mandatário não esteve por trás da violenta repressão que transformou a Praça Tahrir num campo de batalha, na quarta-feira, foi no mínimo conivente com uma tragédia anunciada. Enquanto os simpatizantes de Mubarak avançavam com porretes, pedras e coquetéis molotov contra a multidão de opositores, a polícia curiosamente saiu de cena, desapareceu. Ontem, depois que os adversários de Mubarak contaram seus mortos e feridos, o governo se limitava a oferecer um lacônico pedido de desculpas. Na realidade, soou mais como uma confissão de culpa.
Ao esmagar os protestos, promover uma perseguição sistemática a jornalistas estrangeiros e criar uma espécie de bloqueio às comunicações do país, o mandatário egípcio praticamente selou seu destino. Reforçou a insustentabilidade de sua posição como comandante em chefe de uma nação convulsionada. A transgressora sede de poder deixou em frangalhos a economia do Egito e aumentou a instabilidade de uma região já bastante sensível. Se Mubarak ainda tivesse um pingo de amor por seu país, deveria ouvir a multidão. Antes que seja tarde demais. A garantia de que ele próprio ou seu filho, Gamal, está fora das eleições de setembro já não basta mais. (RC)
Brasileiro quase foi linchado
Quando um jornalista vira notícia, há algo errado. Três profissionais brasileiros comprovaram essa máxima e enfrentaram momentos de tensão e de risco de vida no Cairo. Por telefone, Luiz Antônio Araujo, repórter do jornal Zero Hora (Porto Alegre), contou ao Correio que na manhã de ontem se viu cercado por quase 100 simpatizantes do presidente Hosni Mubarak. ;Alguns deles usavam facas, porretes e pedras. Fui empurrado, socado e chutado. Além de terem roubado minha máquina fotográfica ; um instrumento valioso de trabalho para qualquer jornalista ;, levaram todo meu dinheiro e o celular que eu tinha acabado de comprar;, relatou o repórter, que sofreu uma escoriação na perna. O incidente ocorreu sob um viaduto próximo à Ponte 6 de Outubro, perto da Praça Tahrir. O motorista contratado pelo repórter tinha estacionado o carro na parte de cima. ;Tinha acabado de ocorrer choques entre manifestantes a favor e contra o regime. Era uma área sob controle do Exército e dos leais ao presidente, e pressupus que seria tranquilo trabalhar naquele local;, disse.
Após a agressão, Luiz Antônio tirou o passaporte e começou a gritar que é brasileiro. ;Eles se intimidaram e me empurraram até um militar, que me conduziu a uma garagem perto do hotel Ramsés Hilton;, contou. Ali, as autoridades permitiram-lhe telefonar para Porto Alegre. ;Os militares indicaram um civil, que me levou à Embaixada do Brasil;, acrescentou. ;Essa situação foi vivida, em maior ou menor grau, por muitos jornalistas aqui.; Segundo o repórter, três colegas da TV Al-Jazeera foram presos anteontem dentro de seus quartos, no Ramsés Hilton. ;Hoje, as informações dão conta de que havia pistoleiros circulando dentro do hotel. A gerência convidou os estrangeiros a deixarem o local.;
Os repórteres Corban Costa, da Rádio Nacional, e Gilvan Rocha, da TV Brasil, foram detidos, vendados e tiveram passaportes e equipamentos apreendidos. Presos numa sala sem janelas, em uma delegacia, viram-se obrigados a assinar um depoimento em árabe, por meio do qual se dispõem a viajar imediatamente ao Brasil. ;Achei que seríamos fuzilados;, afirmou Corban à Agência Brasil. Ambos retornam hoje a Brasília. Em nota divulgada pelo Itamaraty, o governo brasileiro ;deplora; os confrontos violentos, ;em particular os atos de hostilidade à imprensa;. ;O governo protesta contra a detenção dos jornalistas Corban Costa e Gilvan Rocha e manifesta expectativa de que as autoridades egípcias tomem medidas para garantir as liberdades civis e a integridade física da população e dos estrangeiros;, afirma o texto. (RC)