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Obama fala com líderes do Oriente Médio e expressa desejo de transição

Dezenas de milhares de manifestantes se ajoelharam por toda a Praça Tahrir, no centro do Cairo, por volta das 17h40 de ontem (13h40 em Brasília). A prece do Magreb, respeitada pelos muçulmanos sempre que o sol se põe, foi ignorada por dois caças F-16 que sobrevoavam a capital a baixa altitude. Em terra, os soldados egípcios observaram tudo do alto de seus tanques Abrams. Todo o Egito já estava sob toque de recolher. Durante a madrugada, 19 jatos particulares haviam partido rumo a Dubai levando empresários milionários aliados do governo. Preocupado com a dimensão da crise envolvendo um de seus principais aliados no Oriente Médio, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, telefonou para os líderes turco, israelense, saudita e britânico. Expôs o desejo de uma ;transição para um governo que responda às aspirações do povo;. Horas antes, a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, havia usado a mesma palavra. ;Desejamos ver uma transição ordenada. Demandamos insistentemente ao governo de Mubarak, que ainda está no poder (;), que faça o que for necessário para facilitar esse tipo de transição ordenada;, disse.

A pressão pela renúncia do presidente egípcio, Hosni Mubarak, aumentou bastante nas últimas horas ; as quais ele passou reunido com o vice, Omar Suleiman, e com a cúpula militar. Até o fechamento desta edição, a situação do mandatário era considerada delicada, agravada pelas 150 mortes nos protestos, desde terça-feira. No entanto, um jornalista egípcio disse à reportagem ter recebido informações sobre uma possível demissão presidencial ainda durante a madrugada. ;Não é uma confirmação, mas são análises sobre a crise;, comentou. O presidente do Parlamento, Fathi Sorur, prometeu que os resultados das legislativas do ano passado, denunciadas como fraudulentas, serão ;corrigidos; pela Justiça. Nesse pleito, o Partido Nacional Democrata, de Mubarak, obteve mais de 80% dos assentos.

Professora da Universidade do Cairo, Madija Doss, de 63 anos, estava na Praça Tahrir quando os caças tentaram intimidar a multidão. ;Fiquei com muito medo. Eles voavam muito, muito baixo, e amedrontaram o povo. Você não pode lançar bombas sobre pessoas; Sabíamos que isso não aconteceria, mas os próprios soldados pareciam assustados;, relatou ao Correio, por telefone. Ela disse ter ficado impressionada com a solidariedade e com a adesão dos egípcios aos protestos contra Mubarak. ;Vi três crianças gritando palavras de ordem e mostrando cartazes. Uma senhora usava uma máscara com a face do presidente, de onde pendiam dois sapatos. Outra coisa que me tocou foi a postura amigável do Exército;, descreveu.

Madija vê com reservas o fato de as forças da oposição, lideradas pela organização Irmandade Muçulmana, terem escolhido Mohammed ElBaradei (Nobel da Paz e ex-chefe da Agência Internacional de Energia Atômica) para negociar com o regime de Mubarak. ;É uma solução boa, mas irreal. ElBaradei tem ótima reputação no Egito, é um homem midiático, mas viveu de forma errante nos últimos anos, não está envolvido o bastante com os temas do país;, critica. ;Ele passa três meses em Viena, depois vai para o Zimbábue, escreve livros, volta para o Egito e pretende ser um líder;, ironiza. O próprio ElBaradei se dirigiu à Praça Tahrir, por volta das 19h30 (15h30 em Brasília), e fez um discurso desafiador, enquanto a multidão gritava ;O povo quer a queda do presidente; e ;Sacrificaremos nossa alma e nosso sangue pela pátria;. Ele pediu paciência aos manifestantes. ;Vocês reconquistaram seus direitos e o que começamos não pode ter volta. Temos uma demanda principal ; o fim do regime e o início de uma nova era, um novo Egito;, declarou.

Durante o dia, Mubarak deu demonstrações de que o poder lhe escapa pelas mãos. Decidiu estender em mais uma hora o toque de recolher, que passa a vigorar entre 15h e 8h. O ministro do Interior, Habib ElAdli, ordenou o retorno da polícia antimotins às ruas. Um manifestante contou à TV Al-Jazeera que um soldado revelou ter recebido ordens para matar opositores. Em entrevista por e-mail, Walid Phares, conselheiro do Congresso dos Estados Unidos e autor de A revolução próxima: a batalha pela liberdade no Oriente Médio, afirmou que a Casa Branca deseja se assegurar que as instituições do Egito continuam a funcionar, enquanto se discute a saída de Mubarak. ;As preocupações de Obama e de Hillary envolvem a população civil, o Exército e a disseminação de extremistas;, explica. Segundo ele, ElBaradei pode desempenhar o papel de líder de um governo de transição, desde que apoiado por uma coalizão e pela juventude. Phares aposta que a renúncia do presidente egípcio imediatamente ou após a eleição legislativa é uma questão de negociação. ;O importante é que o público veja a transferência de poder e o compromisso com a democracia;, conclui.


DEPOIMENTO
;Esse país é nosso;

Por volta das 15h de ontem (19h no Cairo), o Correio conversou por telefone com o egípcio Tarek Shalaby. O webdesigner e blogueiro, de 26 anos, estava acampado na Praça Tahrir, no centro da capital, onde passaria a noite. Dez minutos antes da ligação, Mohammed ElBaradei, líder da oposição e Prêmio Nobel da Paz, havia encerrado seu discurso à multidão.

;Nesse momento, cerca de 30 mil egípcios estão aqui em Tahrir, rompendo o toque de recolher imposto pelo governo. No geral, há muito otimismo. Pessoas de diversos setores da sociedade estão bastante furiosas, mas, ao mesmo tempo, sabem que é uma questão de tempo para que Mubarak renuncie. Ele não será capaz de suportar nossa pressão. Nós somos muito mais fortes do que jamais fomos. Ganhamos poder, atribuído pelo povo e para o povo. Há cerca de 10 minutos, Mohammed ElBaradei ; ex-chefe da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) ; veio até aqui e fez um pronunciamento. Milhares de pessoas ficaram à sua volta para ver o que ele tinha a dizer. Não pude ouvi-lo bem, mas eu sei que ele declarou aceitar ser presidente temporário, até a convocação de eleições. Parece que ele obtém o apoio da Irmandade Muçulmana e dos socialistas. Pelo que eu soube, ElBaradei deseja ocupar a Presidência apenas até a realização de eleições livres. Durante as últimas horas, a multidão tem gritado palavras de ordem, como ;Mubarak, saia;; ;Mubarak, o avião espera por você;; e ;Gamal e seu pai, o Egito inteiro os odeia;. Agora, as pessoas estão sentadas, conversando, comendo ou apenas esperando.

Cheguei à Praça Tahrir 10 minutos depois que os caças sobrevoaram o local. As pessoas ficaram um pouco confusas, mas não nos importamos com o toque de recolher. O Exército não tem cometido atos de violência. Se Mubarak quiser uma guerra, basta ordenar que os soldados abram fogo contra nossa gente. Acreditamos que eles estejam do nosso lado. A polícia desapareceu das ruas e os saqueadores destruíram vários lojas na capital. Montamos grupos de civis para vigiar cada esquina do Cairo. As pessoas também estão saindo às ruas para recolher o lixo e organizar o trânsito. É incrível como a polícia nos trouxe problemas ao longo dos anos, por meio da brutalidade e da humilhação. Agora, estamos cuidando das coisas.

Não desistiremos, até que Mubarak saia. Mubarak não tem qualquer opção, desde terça-feira, a não ser renunciar. Ele já está fora, mas ainda não sabe disso. É um louco, perdeu o controle. Provamos que podemos administrar o Egito e que esse país é nosso. Vivemos sob uma ditadura. Somos amedrontados pela polícia e levados à Justiça sem chance de defesa. Vivemos uma onda de corrupção e sob extrema pobreza. Cerca de 40% dos egípcios estão abaixo da linha de pobreza e não sabem como sobreviver e como alimentar seus filhos. Nós escolhemos nosso destino. Não queremos mais ser humilhados.;