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Hosni Mubarak nomeia vice e premiê, mas manifestantes exigem sua renúncia

Na manhã de ontem, uma imagem chamou a atenção da ativista política e blogueira Rowand Helmii, no centro do Cairo. ;Os soldados estavam cantando conosco. Ao ver que um dos manifestantes sangrava bastante, um militar ajudou-o a se levantar e lhe ofereceu café e pão com manteiga;, contou ao Correio, por telefone. De repente, as forças leais ao presidente Hosni Mubarak começavam a mudar de lado. ;É um sinal de que Mubarak não manda mais;, comemora a egípcia de 20 anos. Pela primeira vez em três décadas, o Egito ganhou ontem um vice-presidente: Omar Suleiman, chefe dos serviços de inteligência, tomou posse diante do mandatário. Ahmad Shafic, ministro da Aviação, foi designado premiê. Horas antes, todo o gabinete de ministros havia se demitido. O líder da oposição, Nobel da Paz e ex-chefe da Agência Internacional de Energia Atômica Mohammed ElBaradei considerou as nomeações ;insuficientes;.

Na tentativa de conter o levante, as autoridades ampliaram em duas horas o toque de recolher, que passa a vigorar às 16h (meio-dia em Brasília). Mas a população voltou às ruas e a polícia agiu sem piedade, matando três manifestantes. o número de mortos desde anteontem chega a 73 ; 62 na sexta-feira e 11 ontem. Ao menos 2 mil pessoas ficaram feridas.

;Os manifestantes exigem que todo o regime caia. Shafic era ministro do gabinete anterior e Suleimar sempre esteve em evidência. Não acho que essas medidas vão satisfazer a opinião pública;, afirmou à reportagem Amr ElBeleidy, morador do Cairo. A 10 minutos do centro da capital, no subúrbio de Gizé, Mohammed Ghorab descrevia um cenário perturbador. ;Há poucos policiais nas ruas, não há qualquer organização no trânsito, que tem sido controlado por cidadãos comuns;, relatou, por telefone. ;Pessoas estão sendo atacadas dentro de casa. Um grande supermercado na região norte do Cairo foi totalmente saqueado e incendiado;, acrescentou.

Segundo Ghorab, indivíduos ;vandalizaram; a sede do governista Partido Nacional Democrático (PND) foi ;totalmente vandalizada;. ;Tiraram tudo de lá. Ouvi falar que o número de mortos passa de 95;, contou. Ele considera o discurso de Mubarak ;absolutamente insuficiente; e crê que o Exército será crucial para determinar o rumo da crise. ;Até então, apenas a polícia e a Guarda Presidencial estavam nas ruas. Queremos que todo o establishment renuncie;, comentou. Por sua vez, o fotógrafo Mohamed Reda, do Cairo, revelou que muitos egípcios estão em pânico. ;Ninguém sabe quando o toque de recolher será cancelado. Muitas lojas baixaram as portas, as pessoas começam a estocar alimentos em casa, mas comprar suprimentos ficou mais difícil.;

Exército

De cima da Ponte Kasr Al Nile, próximo à Praça Tahrir, o empresário Houssein Sharnouby, 26 anos, confirmou ao Correio que o Exército não tem usado a força. ;Os soldados estão lá apenas para proteger as pontes e as múmias nos museus, e até interagem com as pessoas;, disse, às 19h50 (15h50 em Brasília). O manifestante admitiu que o alvo dos opositores é Mubarak. ;Não queremos a formação de um novo governo, mas a saída do presidente e a convocação de eleições. Se ele não o fizer, vamos continuar com a revolta até que isso ocorra;, assegurou.

Em meio à situação cada vez mais instável, a Irmandade Muçulmana ; a principal força de oposição do Egito ; reiterou seu apoio à ;abençoada rebelião pacífica; dos egípcios e pediu a formação de um ;governo interno sem o Partido Nacional Democrata;, além de eleições honestas. O sunita Yusuf Al-Qaradawi, um dos mais influentes clérigos muçulmanos do mundo, mandou um recado a Mubarak.

;Presidente, eu o aconselho a deixar o Egito. Não há outra solução;, disse à rede de TV Al-Jazeera. ;Vá, Mubarak, tenha misericórdia do teu povo e vá;, alertou Al-Qaradawi, líder espiritual da Irmandade Muçulmana. Ontem, o presidente egípcio perdeu um importante aliado. Ahmad Ezz, dirigente do Partido Nacional Democrático e um dos pilares de seu regime, apresentou sua demissão.

Tesouro ameaçado
; O arqueólogo Zahi Hawass, presidente do Conselho Supremo de Antiguidades, denunciou que saqueadores entraram no Museu Egípcio durante os protestos de sexta-feira e destruíram duas múmias. Situado no centro do Cairo, o museu detém a maior coleção mundial de relíquias da época dos faraós. Ontem, cidadãos egípcios ;abraçaram; o Museu
do Cairo, onde está a célebre máscara mortuária do faraó Tutancâmon, na tentativa de preservar a coleção.



Árabes têm reações divergentes
Enquanto o presidente Hosni Mubarak agarrava-se como podia ao cargo, líderes políticos ocidentais e orientais se dividiam ontem em relação ao apoio ao governo egípcio. A SPA, agência oficial de notícias da Arábia Saudita, informou que o rei Abdullah ligou para Mubarak e prestou solidariedade em relação aos protestos. No telefonema, o rei saudita disse que a defesa da liberdade de expressão não pode justificar nenhum ato de rebeldia. Mais cedo, o presidente palestino, Mahmud Abbas, já tinha dado apoio ao colega egípcio. ;O presidente Mahmud Abbas telefonou para o presidente Mubarak e declarou sua solidariedade ao Egito e seu compromisso com a segurança e a estabilidade;, informou um comunicado divulgado pelo gabinete de Abbas.

O Irã, por sua vez, ainda não se manifestou sobre a crise no Egito. O porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Ramin Mehmanparast, afirmou que Teerã estará atento aos desdobramentos dos protestos. Mehmanparast ressaltou, no entanto, que é preciso evitar respostas violentas à população.

Do lado ocidental, o Reino Unido e a França engrossaram o coro dos apelos para que Mubarak dialogue com os manifestantes. O ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, William Hague, afirmou que o líder egípcio precisa ter uma conversa pacífica com o povo de seu país. O mesmo pedido veio do primeiro-ministro francês, François Fillon, que ressaltou sua extrema preocupação com a repressão na região. Antes deles, ainda na sexta-feira, os Estados Unidos ; tradicional aliado de Mubarak ; também haviam condenado a resposta desmedida do líder egípcio às manifestações.

Além da repercussão internacional, a onda de protestos contra a carestia e contra regimes autoritários continua a atingir os países árabes. Cidadãos da Jordânia e do Iêmen também foram às ruas ontem, mas não houve nenhum incidente mais grave.

Incerteza
;Não tenho ideia do que vai acontecer nas próximas horas. Estive na rua pela manhã e não havia absolutamente nenhum policial lá. A situação é muito volátil e bastante imprevisível, pelo menos para mim. Mas sinto que as pessoas não ficaram satisfeitas com as mudanças no governo. Elas querem que Mubarak saia;
Amr ElBeleidy, morador do Cairo

Análise da notícia
Islamização, um risco real

Quando o aiatolá Ruhollah Khomeini ajudou a destituir do poder o xá Reza Pahlevi, em 1979, os iranianos certamente pensavam que o fim de 37 anos de regime representaria uma guinada para a democracia. Ocorreu o inverso. A Revolução Iraniana instituiu a sharia (lei islâmica) no país e esmagou qualquer tentativa popular de contestação ao regime. Uma eventual renúncia do presidente Hosni Mubarak pode semear terreno para um fenômeno parecido. Com agravantes: por manter alianças com os Estados Unidos e com Israel, o Egito funciona como uma espécie de elemento estabilizador em uma região por demais conflituosa. Sua islamização romperia qualquer laço com o Ocidente e o transformaria num chamariz para outras nações árabes adotarem a sharia.

Um cenário assim seria tudo o que os extremistas mais desejam. A rede terrorista Al-Qaeda sonha com a instalação de um califado islâmico, uma espécie de entidade transnacional submissa à interpretação mais radical do Corão. Diante dessa hipótese, o Estado de Israel ficaria praticamente abandonado à própria sorte. Apesar de já ter sinalizado que não deseja o poder, a Irmandade Muçulmana defendeu ontem que o Egito enfrente uma transição política pacífica. Durante os últimos 30 anos, a organização foi amordaçada por Mubarak. Sem ele pelo caminho, fica fácil perceber que o desejo de uma oposição sufocada é fazer valer sua voz. (RC)