Jornal Correio Braziliense

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Haitianos buscam alternativas de sobrevivência no comércio informal

Monique Renne (fotos) Enviadas especiais (*)

Porto Príncipe ; É no coração de Bel-Air, o bairro de Porto Príncipe mais afetado pelo terremoto de janeiro de 2010, que pulsa a vontade do povo haitiano de se reerguer. Entre os prédios ainda em ruínas e as ruas lotadas de carros durante todo o dia, espremem-se vendedores de tudo: roupas e calçados usados, colchões, peças de carro, cartelas de medicamentos. É tudo exposto e negociado na rua mesmo, disputando o pouco espaço com uma constante multidão de pedestres. Apesar de não ser exatamente uma novidade no Haiti, o comércio informal, após a tragédia do último ano, passou a ser a principal alternativa para quem não quer viver de doações ; ou mesmo para quem as recebe e depois coloca à venda.

Até mesmo nos acampamentos de desabrigados, em meio às barracas de lona, é possível ver a economia informal se movimentar, por meio de serviços prestados entre os próprios moradores e até em pequenos pontos de vendas. Gabrielle Dieudonne, 42 anos, montou uma barraca no acampamento Jean-Marie Vincent ; o maior de Porto Príncipe, que abriga 50 mil pessoas ;, no qual também vive há um ano. Nela, vende comida, produtos de higiene pessoal, brinquedos. Tudo em gourde, a moeda local, que vale cerca de dois centavos de dólar.

A procura é maior por alimentos como macarrão, leite e ovos ; estes, vendidos por unidade a 5 gourdes. ;Compro tudo no centro da cidade, mais barato, para revender aqui;, explica a vendedora, que tira dali a renda para sustentar os seis filhos. Mas a situação dos vizinhos sensibiliza Gabrielle, que revela aceitar fiado. ;Tem muita gente que não tem como pagar, então eu deixo pegar e pagar depois. A situação é difícil para todo mundo;, justifica. No Haiti, estima-se que a maioria da população viva com menos de US$ 2 por dia.

Quem não tem jeito para o comércio oferece seus serviços à comunidade que está em volta. É o caso de Rosemarie Orelien, 53 anos, que vive com mais cinco familiares em um barraco de menos de 5 metros quadrados, também em Jean-Marie Vincent. Depois de perder um dos três filhos e sua casa no terremoto, ela resolveu resgatar a antiga máquina de costura para atender os novos vizinhos, como meio de sobrevivência. ;Como já estava muito velha para trabalhar em uma fábrica, decidi continuar costurando por conta própria;, conta Rosemarie. Perto dali, outras mulheres lavam roupas em troca de gourdes.

Lucro demorado
Os produtos comercializados nas ruas de Porto Príncipe vêm geralmente da República Dominicana, de Miami e do Panamá, onde são comprados por atacado, e chegam pelos portos da capital e de Miraguan, que fica a cerca de duas horas de carro da cidade. Em alguns casos, o lucro do vendedor pode chegar à metade do valor investido. Um tênis comprado por 1 mil gourdes (cerca de US$ 25) em Miami, por exemplo, é revendido em Porto Príncipe por 1,5 mil gordes (cerca de US$ 37). ;Mas, na maioria das vezes, demora muito para vender um produto como esse aqui, que é considerado caro para os haitianos;, afirma o tradutor Fréderic Nuzil, que conhece essa realidade dentro da própria família, onde alguns resolveram se dedicar ao mercado informal.

Mas há quem coloque à venda produtos de doação, como kits de higiene pessoal, roupas e comida. Um dos produtos mais valiosos, especialmente em meio à epidemia de cólera, é a água mineral. O preço médio de um galão de 12 litros é US$ 1,50 ; cerca de um terço do valor do salário mínimo, equivalente a US$ 5.

O comércio informal se estende no bairro mais abastado de Pétion Ville e nas proximidades do aeroporto da capital, região onde os produtos expostos ; de malas a peças de artesanato ; quase invadem as ruas. O público-alvo são os estrangeiros, que chegam, em geral, para trabalhar em projetos de organizações internacionais e com a parte civil da Missão de Paz. São eles que também movimentam o que restou do setor hoteleiro em Porto Príncipe, já que lotam os poucos bons hotéis que ficaram de pé após o terremoto, como o Karibe, onde está hospedado o ex-ditador Baby Doc. Lá, as diárias variam entre US$ 160 e US$ 750, e as reservas precisam ser feitas com antecedência.


(*) A equipe viajou a convite
do Ministério da Defesa


Eleições conturbadas


Porto Príncipe ; Há oito dias, os haitianos deveriam ter retornado às urnas para o segundo turno de sua eleição presidencial. Porém o adiamento do pleito só foi oficializado no próprio domingo, sem que uma nova data tenha sido marcada para a votação que finalizará o conturbado processo eleitoral. A volta do ex-ditador Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, ao país após 25 anos de autoexílio em Paris, e a ameaça do retorno do também polêmico ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, trouxeram ainda mais incertezas sobre o futuro da política. Nas ruas de Porto Príncipe, os haitianos já pensam no cancelamento do polêmico primeiro turno para a entrada dos mais novos atores no processo.

De acordo com a apuração apresentada pelo Conselho Eleitoral Provisório (CEP), a ex-primeira-dama Mirlande Manigat foi a candidata mais votada em 28 de novembro passado, seguida pelo governista Jude Celestin e pelo cantor Michel Martelly. Uma avaliação feita pela Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre os resultados, apresentada ao governo haitiano na última quinta-feira, traz uma reviravolta no segundo turno. Após descontar os votos supostamente fraudados, o organismo aponta que Martelly, e não Celestin, deve ir para o segundo turno com Manigat. A decisão de acolher ou não a recomendação da OEA é do atual presidente, René Préval, que tem sofrido pressão internacional para tirar seu candidato da disputa.

Oficialmente, o mandato de Préval encerra-se no próximo dia 7, mas a expectativa é de que ele permaneça até o tempo que a Constituição do país permite, 14 de maio, quando completa cinco anos na Presidência. Depois disso, um governo de transição teria de ser formado para dar continuidade ao processo de sucessão.

Com tanta indefinição, os haitianos já começam a considerar o retorno de presidentes que foram depostos ou fugiram do país após governarem o país sob sangrentas ditaduras. ;No governo de Duvalier, ao menos tinha emprego, comida e luz para todos os haitianos;, lembra Jerald Izéb, 45 anos, hoje morador do acampamento de Champ de Mars, em frente às ruínas do Palácio Nacional. Assim como ele, outras centenas de haitianos demonstraram apoio a Baby Doc desde sua chegada a Porto Príncipe, como manifestações em frente ao Palácio da Justiça, quando o ex-ditador foi rapidamente detido, e ao hotel em Pétion Ville no qual se instalou desde que voltou.


Para Fréderic Nuzil, que é pastor e trabalha como tradutor, o apoio a Aristide seria ainda maior. ;Se ele, de fato, voltar ao país, conseguirá reunir multidões nas ruas;, arrisca. No sábado, Préval falou pela primeira vez sobre a volta de Baby Doc ao país. ;Todo haitiano tem o direito de retornar;, disse , assinalando que ;a própria Constituição diz também que cada pessoa tem que responder perante a Justiça por seus atos;.