O budismo prega que a vida é sofrimento e incita seus seguidores a aceitarem suas fortunas e seus infortúnios. Em um país de 53,4 milhões de habitantes (47,5 milhões de budista), a dissidente Aung San Suu Kyi é, ao mesmo tempo, uma prova e uma exceção. Líder da oposição em Mianmar, nação governada a mão de ferro pelo general Than Shwe e por sua Junta Militar, ela amargou 15 dos últimos 22 anos sem direito à liberdade (leia o Personagem da notícia). Desde 2003, Suu Kyi cumpre prisão domiciliar na casa de dois andares às margens do Lago Inya, em Yangun, capital de Mianmar (ou Burma). A expectativa é de que ainda hoje a política, vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 1991, seja solta mais uma vez. Citando integrantes da Liga Nacional pela Democracia (LND) e autoridades do governo, agências internacionais de notícias divulgaram ontem que Shwe assinou ontem a suspensão da Ordem de Restrição sobre Suu Kyi.
Assim que a informação começou a circular pela cidade de 4,4 milhões de habitantes, cerca de 400 pessoas se reuniram diante do quartel-general da LND, à espera da libertação. Outras 300 montaram guarda na rua à frente da casa de Suu Kyi. Mas, como em qualquer ditadura, o direito à associação foi violado. Cinco caminhões da polícia pararam diante da mansão, um deles entrou no complexo. Os agentes ordenaram a dispersão dos manifestantes. Nyan Win, um dos advogados de Suu Kyi, revelou à TV CNN que ela deve ser solta no início da noite de hoje (hora local), quando expira a última pena de sete anos de prisão domiciliar. Ao mesmo tempo, rumores davam conta de que a chamada "Dama de Yangun" teria recusado uma oferta de liberdade condicional e estaria recebendo a visita de diplomatas.
Para Benjamin Zawacki, especialista em Sudeste da Ásia na organização não governamental Anistia Internacional, a soltura de Aung Suu Kyi está "bastante atrasada". "Como prisioneira de consciência, ela jamais deveria ter sido detida", afirma ao Correio, em entrevista por e-mail. Ele acusa a comunidade internacional de fracassar ao não exercer uma pressão efetiva sobre Mianmar em relação ao futuro de seus 2,2 mil prisioneiros políticos e às constantes violações dos direitos humanos. "A tortura nas prisões é endêmica. Nas regiões de minorias étnicas, a Junta Militar cometeu crimes de guerra e contra a humanidade, além de não ter dado passos positivos rumo à consolidação dos direitos econômicos, sociais e culturais", explica, ao acrescentar que o histórico de Mianmar nesse aspecto é "revoltante".
O birmanês Myo Thein sabe o que é isso. "Meu irmão mais velho, Myo Yan Naung Thein, é um dos mais proeminentes líderes de Mianmar. Ele ficou mais de 10 anos na prisão e, durante o interrogatório, foi brutalmente torturado e adquiriu uma paralisia parcial", relata à reportagem, também por e-mail. Myo fundou em Londres a organização não governamental Burma Democratic Concern (BDC) e passou a monitorar a situação em seu país natal. "A prisão arbitrária de Suu Kyi demonstra que a Junta Militar se sobrepõe às leis e volta as costas à reconciliação nacional", critica. De acordo com ele, a opositora líder da LND transformou-se em ícone mundial do pacifismo. "Como líder corajosa, ela nos dá esperança, confiança e fé em nossa aspiração pela democracia em Mianmar", acrescenta Myo.
O ativista acusa o regime do general Than Shwe de ampliar repetidamente o tempo de detenção da dissidente. "Suu Kyi passou 15 dos últimos 22 anos sob prisão domiciliar e, como a Junta Militar não quis libertá-la quando ela completou seis anos de detenção ilegal, as autoridades montaram um plano para a manterem presa", diz Myo. Ele lembra que a LND venceu com folga as eleições de 1990. Os militares haviam prometido entregar o poder. Com a derrota, ignoraram a transferência de governo. "Para anular o resultado daquelas eleições, o general Shwe planejou o vergonhoso pleito de 2010, arquitetado para legitimar o domínio militar", explica.
Ex-embaixador do Reino Unido em Mianmar, Derek Tonkin encontrou-se com Suu Kyi em dezembro de 1999 e, anos depois, com Michael Aris, marido da dissidente. Ele vê como possível a recusa da Nobel da Paz a aceitar uma liberdade condicionada e não crê numa "aposentadoria" da Dama de Yangun. "Tenho certeza de que ela seguirá lutando pela democracia. Mas está com 65 anos, alguns dos integrantes mais experientes da LND têm entre 70 e 80 anos, e o partido foi cassado", lamenta.