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Otan ajuda líderes talibãs a chegar à capital para negociar com Karzai

O auditor fiscal Matiullah Qaderdan, 25 anos, está cansado de tantas mortes. Talvez por isso, não lhe causaram surpresa as palavras do general David Petraeus, comandante das operações da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no Afeganistão. ;Não seria tarefa fácil a um líder talibã chegar a Cabul se a Isaf (Força Internacional de Assistência à Segurança) não estivesse a par e permitisse que isso acontecesse;, afirmou o oficial da aliança militar. Petraeus admitiu que seus soldados ajudaram os insurgentes a deixarem seus ;santuários; no Paquistão e chegarem à capital afegã, onde foram recebidos pelo presidente Hamid Karzai. A comitiva incluiria três membros do chamado shura de Quetta (Paquistão) ; uma espécie de conselho consultivo ; e um integrante da rede Haqqani, uma organização insurgente independente aliada do Talibã.

O jornal The New York Times cita ao menos um caso no qual comandantes talibãs cruzaram a fronteira e embarcaram em um avião da Otan. Uma autoridade do Afeganistão revelou que as forças ocidentais bloquearam estradas para permitir a passagem dos milicianos rumo a áreas controladas por elas próprias e pelo Exército do Afeganistão. ;Se queremos um futuro e desejamos deter esses assassinatos, precisamos colocar um ponto final nessa guerra;, desabafa Qaderdan, em entrevista ao Correio, pela internet. ;Nossa população está frustrada com as notícias de civis mortos pelo Talibã e pelas forças da coalizão. Eu prefiro negociar com o Talibã;, acrescenta. Morador de Cabual, ele critica Karzai por manter senhores da guerra e antimilicianos no governo. ;Eles mataram várias pessoas no passado;, desabafa.

Autor do best-seller Descent into chaos: The United States and the failure of nation building (Descida ao caos: os Estados Unidos e o fracasso da construção nacional, em tradução livre), o jornalista paquistanês Ahmed Rashid afirma que Karzai e a cúpula do Talibã têm se engajado em negociações desde 2008. ;Agora, um ponto positivo é que, pela primeira vez, os EUA e a Otan facilitaram o processo dialógico;, admite. No entanto, Rashid cobra um envolvimento mais intenso da Casa Branca. Segundo o Times, os insurgentes envolvidos nas negociações representariam múltiplas facções da milícia fundamentalista islâmica. Até ontem, a informação de que a Otan oferece proteção a inimigos aos quais tentava capturar ou matar era mantida em segredo.

Qaderdan vê a iniciativa das tropas de coalizão como uma oportunidade histórica. ;Podemos resolver nossos problemas por meio do diálogo;, sugere. Ele lembra que, entre setembro de 1994 e dezembro de 2001, o Talibã representava uma grande porção da sociedade afegã. ;O movimento tem suas próprias demandas;, afirma, ao tentar justificar a importância de conversações diretas com Cabul. A principal polêmica nessa atitude está no fato de que soldados ocidentais ainda são vítimas de emboscadas. Enquanto despendem esforços e se arriscam na escolta dos talibãs, os militares estrangeiros precisam lidar com explosões de minas artesanais plantadas pelos próprios insurgentes.

Fraude
Ainda que o Afeganistão assente as bases da paz com o Talibã, terá um longo caminho pela frente até consolidar a democracia e a estabilidade política. A Comissão Eleitoral do país invalidou ontem 1,3 milhão de votos, o que representa mais de 20% da votação total nas eleições legislativas de 18 de setembro. O pleito foi marcado ameaças da insurgência e por denúncias de fraudes e irregularidades. ;Um total de 1,3 milhão de cédulas foram invalidadas. Tivemos mais de 5,6 milhões de votos;, anunciou Fazil Ahmad Manawi, presidente da entidade. A cifra corresponde a uma afluência às urnas de 48,5%. Os cidadãos afegãos elegeram 249 deputados entre 2,5 mil candidatos para um assento na Wolesi Jirga, a Câmara Baixa da Assembleia Nacional.

Para Ahmed Rashid, o Afeganistão está longe de se tornar um país democrático. Apesar dessa constatação, ele vê algum motivo para comemoração. ;Impressionou-me a performance da Comissão Eleitoral, uma instituição puramente afegã. Suas autoridades tiveram a coragem de descartar tantos votos fraudulentos;, observa. A Comissão de Queixas do país ; a entidade encarregada de analisar as supostas irregularidades ; recebeu milhares de denúncias de fraudes cometidas durante a campanha, nos comícios e na recontagem dos votos. As investigações atrasaram a divulgação dos resultados definitivos das eleições, que deve ocorrer apenas em nove dias.
Violência sem trégua

Dez civis morreram ontem na explosão de uma mina artesanal colocada por insurgentes talibãs durante a passagem de um carro, no oeste do Afeganistão. De acordo com a polícia, a detonação ocorreu numa estrada entre as províncias de Nimroz e Heart, e atingiu várias mulheres e crianças. Também em uma estrada ao sul do país, outra explosão matou um soldado da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).