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Jornais argentinos desmentem ameaças na compra de fábrica de papel

De um lado, a presidenta Cristina Kirchner acusa os dois maiores jornais da Argentina de terem comprado uma empresa de papel de imprensa por meios ilícitos e tortura, durante a ditadura militar de 1976-1983. De outro, os donos do Clarín e do La Nación acusam o governo de pressioná-los por serem independentes e críticos, a um ano das eleições presidenciais. A polêmica deve ser decidida pela Justiça a partir dos próximos dias. ;Serão feitas apresentações nos tribunais judiciais para encaminhar uma situação que leva 33 anos de manejo obscuro, com práticas comerciais desleais e infiéis em relação aos acionistas;, acusa Cristina. ;Aos que pensam ou escrevem que queremos nos apropriar da Papel Prensa, lamento desapontá-los.;

As declarações do irmão e da filha de David Graiver, antigo dono da Papel Prensa, uma das duas únicas empresas de papel na Argentina, que tem o governo entre seus acionistas. Elas vieram à tona ontem para aumentar a tensão sobre o caso. Isidoro e María Sol Graiver garantiram em cartório que a empresa foi vendida em 2 de novembro de 1976, ;sem ameaças nem extorsões e em liberdade;. As afirmações contrariaram Alberto González Arzac, representante do Estado na Papel Prensa. Ele vem alegando que a aquisição se fez por ;uma variedade de crimes de lesa-humanidade cometidos contra o grupo Graiver, liderado pelo empresário David Graiver, morto em um estranho acidente aéreo, em 1976;.

O anúncio dos familiares de Graiver foi discutido no Congresso e dividiu opiniões no país. O chefe da bancada kirchnerista, Agustín Rossi, colocou em dúvida a veracidade das declarações. ;A informação que tenho é de que, no momento da venda das ações de Papel Prensa, Isidoro Graiver não tinha nenhuma responsabilidade;, disse Rossi à Rádio 10. Já o chefe de Gabinete da presidenta, Aníbal Fernández, criticou a difusão do testemunho de María Sol. ;A filha de David Graiver era uma menina de dois anos de idade (na época da venda da empresa). O que querem que ela diga?;, questionou. A deputada oposicionista Elisa Carrió acusou o governo de querer controlar a Papel Prensa e calar os meios de comunicação. ;Se não há papel, não há imprensa;, resumiu.

A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) também questionou a intenção de Cristina de enviar um projeto de lei ao Congresso para declarar de ;interesse público; a produção, distribuição e comercialização do papel para jornais. ;Surpreende o fato de o governo fazer as acusações tornando expressa a intenção de controlar os meios de comunicação, por meio da regulação da fabricação e distribuição do papel ; um insumo básico da indústria de comunicação que, na Argentina, não é escasso nem apresenta problema de abastecimento. Daí, não tem por que uma regulação especiais;, disse o presidente da SIP, Alejandro Aguirre.

O diretor geral do Clarín, Ricardo Kirschbaum, afirma que o governo não tolera a existência de meios independentes, e submete a mídia a uma pressão política e econômica. ;Eles continuam com esse revisionismo histórico sobre a forma como se comprou a Papel Prensa durante a ditadura militar, e fazem uma interpretação de fatos que não ocorreram, com testemunhas falsas;, explicou Kirschbaum ao Correio, por telefone. Segundo ele, a pressão sobre o grupo Clarín já dura dois anos. ;Existe uma ofensiva sobre nossas empresas, jornais e aquisições. A última foi a caducidade de nossa companhia de banda larga;, conta.

O diretor do Clarín discorda de analistas brasileiros que comparam as manobras de Cristina às de Hugo Chávez, na Venezuela. ;São sintomas do chavismo, mas ainda não é chavismo;, pondera. Kirschbaum diz que o jornal está preparado para responder a qualquer questão perante a Justiça.

De Buenos Aires, o diretor-geral do Clarín, Ricardo Kirschbaum, falou ontem sobre o tema com exclusividade ao Correio:

Por que o governo de Cristina Kirchner diz que Papel Prensa prejudica outros jornais?

Porque é uma das duas fábricas de papel nacional que existe na Argentina. Existe Papel Prensa e Papel de Tucumán. Papel Prensa é a mais moderna e tem um sistema de quota de papel de acordo com o volume de compra. Eles (do governo) têm uma interpretação muito particular de uma empresa privada, a de submetê-la a determinadas regras que eles querem impor. Esta questão das quotas está sendo utilizada politicamente, porque o Clarín e La Nación ;que são dois sócios de Papel Prensa e têm a maioria acionária; são os que consomem 75% da produção da fábrica. E o resto dos jornais consomem 25%, quando não compram no exterior, como está acontecendo atualmente. Em determinadas circunstâncias, por questões comerciais, houve disputas sobre a quantidade de papel. Estas disputas são comerciais em qualquer parte do mundo, mas aqui se tornou política. O objetivo é poder pressionar a empresa.

O governo tem uma parte de Papel Prensa?

Eles têm 28%. Os diretores-representantes do Estado na Papel Prensa, durante 27 anos aprovaram os balanços e as políticas comerciais da empresa. Assinaram sem nenhuma objeção. Agora descobrem que é tudo obscuro, que é uma associação mafiosa; É uma maneira de distorcer a verdade.

Então por que isso sai agora? Antes Clarín estava a favor do governo?

Por uma simples razão. Nós tivemos uma política de apoiar o governo no começo, depois da crise de 2001. Parecia-nos que a Argentina precisava de um esforço coletivo para enfrentar os problemas graves que tinha o país. Apoiamos basicamente a renegociação da dívida externa e da renovação da Corte Suprema de Justiça ;que na época de Menem era um escândalo. Mas não apoiamos quando este governo começou a bater de frente com setores internos, como a grande briga de 2008 com o campo (tentaram aumentar os impostos sobre exportações agrícolas). E a partir daí, consideraram que Clarín era um fator perigoso para seus planos e começaram a atacar. Clarín é o jornal mais vendido na Argentina e o segundo é La Nación. Estes dois jornais estão sob fogo oficial.

Alguns analistas no Brasil dizem que Cristina está seguindo a cartilha do presidente venzeulano Hugo Chávez. O senhor concorda?

Eu acho que são sintomas do chavismo, mas ainda não é chavismo.

Familiares do antigo dono de Papel Prensa, David Graiver, declararam que não houve fraude nem tortura na época da venda da empresa. Acha que vai ser suficiente para desarmar o governo?

Não. A operação está realmente está em 50% do que queriam fazer. E isso ainda não terminou, porque é fundamental para o processo eleitoral de 2011 (para a presidência do país). Eles precisam neutralizar os jornais independentes para tratar de ganhar as eleições de 2011.

O que vai fazer o Clarín agora?

Seguir fazendo o que fazemos sempre. Tratar de fazer um bom jornal para os leitores. Nosso maior capital é esse.