Asif Ali Zardari precisou de pouco tempo para apreciar as proporções da calamidade que desabou sobre o Paquistão no início do mês, enquanto ele cumpria uma discutida turnê pela Europa. E bastaram as primeiras visitas às regiões mais atingidas pelas piores enchentes em oito décadas ; o Punjab, no norte, e o Sindh, seu berço, no sul ; para o presidente avaliar as dimensões do risco político a que se expôs quando se recusou a interromper a viagem. Zardari, um milionário de passado duvidoso, com um histórico de um punhado de anos preso por corrução, só chegou ao poder por ser o viúvo da ex-premiê Benazir Bhutto, assassinada pelo terror extremista. Herdou o governo, mas nem uma gota do carisma que exala do clã Bhutto.
É um presidente frágil que terá pela frente a missão de comandar a reconstrução, a um custo inicialmente estimado na casa dos bilhões de dólares. Os números da catástrofe são imponentes: mais de 20 milhões de afetados, entre eles 4 milhões de desabrigados; 1,6 mil mortos; mais de um milhão de toneladas de grãos inutilizados e 17 milhões de acres de terras cultiváveis submersos. O Programa Mundial de Alimentação, das Nações Unidas, soou o alarme para o risco de que 6 milhões de paquistaneses passem fome, já que a produção agrícola terá perda da ordem de 10% a 15% ; dado mais preocupante em um país onde o campo emprega dois terços da força de trabalho. Em resumo, um estudo do Citigroup indica que a taxa de crescimento do PIB, antes projetada em 4,4%, deve recuar para 3,1%.
;Se o governo quiser recuperar o apoio e o respeito da população, para evitar que ela seja manipulada pelos extremistas, com suas agendas políticas míopes, tem que pensar longe e com afinco sobre como mudar a fundo a vida dos pobres;, aconselha o cientista político paquistanês Seyed Mohammad Ali. ;Se a distribuição da ajuda for sujeita à corrupção e à rapina das elites, como no passado, quem conquistará o povo serão os extremistas islâmicos, com suas fundações beneficentes;, alerta. Ele lembra que as enchentes, pelo dano extenso que causaram em estradas, pontes e toda a infraestrutura, prejudicaram as operações do Exército contra os extremistas talibãs, enraizados no Vale do Swat e outras áreas do noroeste. ;Na reconstrução, as atenções têm que se concentrar sobre nas áreas menos favorecidas, não naquelas que interessam eleitoralmente aos poderosos.;
Equilíbrio instável
Zardari não deixou de viajar para a Rússia na semana passada, para um encontro de cúpula regional, mas deixou claro que acusou o golpe. ;Todas essas catástrofes fortalecem aqueles que não querem um Estado sólido e com estrutura;, disse o presidente após percorrer a região de Sukkur com o senador norte-americano John Kerry. A presença do político, um influente cacique governista no Congresso, atesta a preocupação de Washington com a estabilidade de um país estratégico para o combate à rede Al-Qaeda no vizinho Afeganistão. ;Estamos perfeitamente conscientes das implicações políticas e estratégicas dessa situação, pois o Paquistão é tão crítico para o mundo, em tantos aspectos;, corroborou Richard Holbrooke, encarregado por Barack Obama de coordenar uma abordagem conjunta para a ameaça terrorista nos dois países.
;Se as coisas fugirem ao controle, isso pode contribuir para a instabilidade política, que é do que menos precisamos agora;, reforçou o chanceler paquistanês, Shah Mehmood Quresh. Zardari, assim como o clã Bhutto, pertence à minoria religiosa muçulmana xiita e mantém um equilíbrio delicado com a cúpula militar, dominada pela maioria sunita (leia o Para saber mais). Na ausência do presidente, foi o Exército quem apareceu, aos olhos dos desabrigados, como a face protetora do Estado. A analista Farzana Shaikh, do instituto londrino Chatham House, alerta a comunidade internacional para a possibilidade de que ;os militares se valham da calamidade para aumentar seu peso político;.
O código Bhutto
Dinastia política do atual presidente ;camuflou; a origem xiita sob o manto de uma orientação laica
Nomes
Zulfikar Ali Bhutto, pai de Benazir e patriarca do clã, trazia o ;DNA; do xiismo já no nome. Zulfikar era o nome da espada de duas lâminas usada em combate por Ali, genro do profeta Maomé, derrotado na disputa pela sucessão do califado. Não por acaso, também o viúvo da ex-premiê assassinada leva o nome daquele que é reverenciado pelos xiitas como seu primeiro imã (;guia;, em árabe).
Al-Zulfikar foi o nome da organização armada criada pelos irmãos de Benazir, Mortaza e Shahnawaz, para vingar a morte do pai, enforcado em 1979 pela ditadura do general Zia Ul-Hak.
Cores
O Partido do Povo do Paquistão (PPP), fundado por Bhutto, reproduz em sua bandeira as cores (preto, verde e vermelho) do estandarte sob o qual lutaram, no século 7, os partidários de Ali (shiaat Ali, em árabe), precursores do xiismo.
Secularismo
Em um país quase 100% muçulmano, onde os xiitas representam uma minoria numérica mas ocupam posições importantes no establishment político e econômico, o fundamentalismo religioso sempre serviu à maioria sunita. Desde o fundador do país, Mohammad Ali Jinnah, os xiitas paquistaneses abraçaram a causa da separação entre Estado e religião, como tática para inibir as perseguições. Benazir, uma mulher independente, formada no exterior, casou-se apenas por conveniência política, em 1987, meses antes de tornar-se a primeira mulher eleita para chefiar o governo, em 1988. O marido, Asif Ali Zardari, é também um xiita de origem abastada e formação ;laica;.
Esquerdismo
O velho Zulfikar, filho de donos de terra e comerciantes, aderiu durante os estudos (nos EUA e no Reino Unido) à ideia do socialismo, que ganhava terreno entre as colônias europeias da Ásia e da África no pós-Segunda Guerra Mundial. O PPP, fundado em 1967, tinha como ideário original uma tentativa de mesclar socialismo, islã xiita e uma orientação geopolítica ;terceiromundista;. O xiismo, como facção derrotada do islã, tem fácil identificação com causas ligadas aos ;de baixo; ou aos ;mais fracos;.
Para saber mais
Guerra Fria muçulmana
As disputas seculares entre muçulmanos sunitas e xiitas soam distantes aos ocidentais, mas têm no mundo islâmico implicação comparável à das rixas étnicas africanas. No Paquistão, uma potência nuclear com profundas desigualdades internas e vizinhança explosiva ; a rival Índia a leste, o Afeganistão a oeste e o Irã a sudoeste ;, esse confronto se entrelaça ao jogo geopolítico.
Desde a independência, em 1949, o Paquistão vive um cabo de guerra entre extremismo religioso e secularismo político. Esse último serve como escudo para a minoria xiita. Já o fundamentalismo cimentou uma aliança instável entre políticos e militares sunitas.
No auge da Guerra Fria, nos anos 1960, o xiita Zulfikar Ali Bhutto foi presidente e premiê. Fundou uma dinastia política sobre a plataforma de um ;socialismo islâmico;, e alinhou-se externamente à China de Mao Tse-tung. Bhutto foi deposto em 1977 (e enforcado dois anos depois) pelo general sunita Zia Ul-Hak, que se aliou aos EUA para armar e apoiar, a partir de 1979, a resistência à ocupação do Afeganistão pela União Soviética.
Com a URSS fora de cena e o terror islâmico elevado à condição de inimigo, Washington investiu em Benazir Bhutto, filha e herdeira política de Zulfikar, para combater os talibãs e a Al-Qaeda. O assassinato da ex-premiê, no fim de 2007, colocou os destinos do clã nas mãos do viúvo, Asif Ali Zardari.