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ONU reconhece a independência de Kosovo

Para a Corte de Haia, a autonomia de ex-província sérvia não viola o direito internacional

Falemnderit SHBA. O engenheiro albanês Flamur Bekteshi, 28 anos, leu o slogan ; ;Obrigado, Estados Unidos;, em seu idioma ; quando deixava o trabalho, no Centro de Telemedicina de Pristina, às 17h30 de ontem (12h30 em Brasília). Estava feliz. Havia feito aniversário na véspera e não imaginava que pudesse ser presenteado com algo que até então não passava de um sonho. Telefonou para a mãe e a namorada, com quem dividiu a felicidade. Por 10 votos a favor e 4 contra, a Corte Internacional de Justiça (CIJ), baseada em Haia (Holanda), havia acabado de reconhecer a legalidade da declaração de independência do Kosovo.

;A declaração de 17 de fevereiro de 2008 não violou nenhuma regra aplicável ao direito internacional geral;, afirmou Hisashi Owada, presidente da máxima instância judicial da Organização das Nações Unidas (ONU), ao ler a sentença. ;No entanto, à CIJ não corresponde pronunciar-se sobre a questão a ela apresentada de tomar partido sobre se o direito internacional conferia a Kosovo um direito positivo de declarar de forma unilateral sua independência;, acrescentou o juiz.



O presidente da Sérvia, Boris Tadic, avisou que seu país ;nunca reconhecerá a autonomia unilateral do Kosovo; e exortou novas negociações com a ONU sobre o status da antiga província separatista. O alerta de Belgrado não foi suficiente para esfriar os ânimos dos kosovares. ;Muitos carros tomaram as ruas de Pristina (capital do Kosovo) para celebrar, com as bandeiras do Kosovo, dos Estados Unidos, do Reino Unido e de países que apoiaram nossa independência. As pessoas tocavam a surla (instrumento de sopro usado em casamentos e outros eventos festivos);, contou Bekteshi ao Correio, por meio da internet. O engenheiro revela que presenciou os primeiros massacres da Guerra do Kosovo, entre 1998 e 1999. ;Meu pai ficou paralisado por um tempo, por causa das torturas cometidas pelos sérvios;, relata. O drama familitar tornou o dia de ontem ainda mais intenso. ;Somos muito gratos aos EUA, ao Reino Unido, à França e à Alemanha;, afirmou. Bekteshi crê que os sérvios reconhecerão a independência do Kosovo, ainda que isso leve tempo.

A gratidão dos kosovares aos EUA provavelmente ficou ainda maior ontem, depois que a secretária de Estado, Hillary Clinton, pediu a todos os países ; incluindo a Sérvia ; que reconheçam a independência. ;Convocamos todos os países a apoiar o estatuto de Kosovo e a se comprometer, construtivamente, no suporte à paz e à estabilidade nos Bálcãs;, disse, ao acrescentar que a CIJ ;aprovou decisivamente a visão dos EUA para a declaração de independência do Kosovo em relação à legislação internacional;.

Até o momento, 69 nações ; inclusive os EUA e 22 dos 27 membros da União Europeia ; aceitam Kosovo como um país autônomo e soberano. Entre os países que ainda não reconhecem a independência kosovar, estão Chipre, Grécia, Eslováquia, Romênia, Rússia, China e Brasil. Questionado sobre a decisão da CIJ, Marco Aurélio Garcia, assessor da Presidência para Assuntos Internacionais, afimou: ;Não conheço o teor da decisão, mas evidentemente o Itamaraty vai analisar e tirar suas consequências;.

Separatismo
Em entrevista ao Correio, o norte-americano Richard Falk, professor de direito internacional da Universidade de Princeton, admitiu que a CIJ deu ;um importante apoio; aos esforços do Kosovo para ser tratado como Estado soberano. ;A opinião da CIJ é considerada uma declaração oficial do direito internacional;, explica. Na opinião dele, o resultado deve levar à aceitação do Kosovo por mais países e forçar sua entrada na ONU, na condição de membro efetivo. ;Pode ser que alguns países, alinhados à Sérvia ou preocupados com clamores separatistas(1) dentro de suas próprias fronteiras, sigam negando Kosovo. Por exemplo, a China está preocupada com a província de Xinjiang e com o Tibete; a Rússia com a Chechênia; a Espanha com a Catalunha e o País Basco; a Grécia com a Macedônia;, conclui.

1 - Na terra de Hugo Chávez
Enquanto a Corte Internacional de Justiça avalizava a independência do Kosovo, os presidentes Serguei Bagapsh (Abcásia) e Eduard Kokoity (Ossétia do Sul) faziam um périplo pela Venezuela ; um dos poucos países que reconheceram as duas repúblicas separatistas da Geórgia como países independentes. Além do presidente Hugo Chávez, os chefes de Estado e de governo da Rússia, de Nauru e da Nicarágua ; por onde Bagapsh e Kokoity já passaram ; aceitam-nas como nações.

Colaborou Isabel Fleck

As grandes datas do Kosovo

A Corte Internacional de Justiça (CIJ) determinou ontem, em Haia, em decisão de caráter consultivo, que Kosovo "não violou o direito internacional", ao proclamar unilateralmente sua independência da Sérvia em 2008. Veja a história deste território, que foi por vários séculos dominado por turcos e reivindicado pelos sérvios como uma de suas províncias, cuja separação culminou no violento processo de desmembramento da Iugoslávia.

- Século XII - Kosovo está no centro do Império Sérvio, sob a dinastia dos Nemanjic, durante a qual foram construídos inúmeros mosteiros e igrejas.

- 1389 - Derrota dos sérvios ante o Império Otomano na batalha de Kosovo Polje. Sob o domínio turco, o equilíbrio étnico da região se altera, em benefício dos albaneses de crença muçulmana e em detrimento dos eslavos ortodoxos sérvios.

- 1913 - Sérvia recupera o controle de Kosovo após as guerras balcânicas.

- 1946 - Kosovo se integra à Federação Iugoslava liderada pelo comunista Josip Broz Tito.

- 1987 - Durante uma visita a Kosovo, Slobodan Milosevic defende os sérvios da província, no que foi considerado o discurso fundador de seu projeto da Grande Sérvia.

- 1989 - Milosevic decide revisar a Constituição sérvia, reduzindo de forma considerável a autonomia de Kosovo.

- 1992 - Ibrahim Rugova, eleito "presidente" de Kosovo em eleições paralelas organizadas pelos albano-kosovares, defende a resistência passiva para obter a independência e organiza instituições paralelas.

- 1997 - Surge o Exército de Libertação de Kosovo (UCK), que inicia ações de guerrilha contra as forças sérvias.

- 1998 - As forças de Milosevic reprimem a UCK e seus partidários. Morrem mais de 10 mil albaneses em Kosovo.

- 1999 - Ante os bombardeios da Otan, Belgrado retira suas tropas de Kosovo, que fica sob a proteção da Missão da ONU em Kosovo (MINUK) e da Aliança Atlântica.

- 2004 - Violentos distúrios contra os sérvios deixam 19 mortos e mais de 900 feridos.

- 2005 - O Parlamento kosovar adota em novembro uma resolução com o objetivo de criar um Estado independente.
Em dezembro, o ex-presidente finlandês Martti Ahtisaari, enviado pela ONU, inicia uma missão para estabelecer o estatuto definitivo de Kosovo.

- 2006 - Em 21 de janeiro morre Ibrahim Rugova. Substitui-o Fatmir Sejdiu, um de seus seguidores.
Em 20 de fevereiro começam em Viena as negociações sobre o estatuto de Kosovo entre sérvios e albaneses de Kosovo.

- 2007 - Em 26 de janeiro, Ahtisaari apresenta um plano para a independência de Kosovo sob supervisão internacional.Em 26 de março, no Conselho de Segurança da ONU, americanos e europeus apoiam esse plano. Rússia, que apoia a Sérvia, rejeita. Em 29 de julho, frente ao bloqueio russo, o Grupo de Contato (Estados Unidos, Rússia, França, Grã-Bretanha, Alemanha e Itália) pede a americanos, russos e europeus que busquem um compromisso entre albaneses de Kosovo e sérvios. Em 10 de dezembro, constatam o fracasso das negociações.

- 2008 - Em 17 de fevereiro o Parlamento de Kosovo proclama a independência. A Sérvia promete lutar com meios pacíficos para revogá-la. Em 8 de outubro a Sérvia conseguiu que a CIJ examinasse a questão da legalidade da proclamação unilateral de independência de Kosovo. Em 9 de dezembro começa a trabalhar a Missão Europeia de Polícia e Justiça de Kosovo (Eulex), na mais importante operação civil da história lançada pela União Europeia.

- 2009 - Em 4 de junho as autoridades de Pristina anunciam que Kosovo se convertia em membro número 186 do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial. Em 1; de dezembro a CIJ inicia as audiências sobre a independência de Kosovo. Do dia 1; ao 11 de dezembro de 2009, interviram Sérvia, Kosovo e 29 Estados, entre eles Rússia e Estados Unidos.

- 2010 - 22 de julho: A CIJ determina, em uma setença de caráter consultivo, que a declaração de independência de Kosovo "não violou o direito internacional geral".