Um desafiador Fidel Castro fez um histórico discurso no Teatro Carlos Marx, durante a sessão solene de criação da Assembleia Nacional do Poder Popular. Era 2 de dezembro de 1976 e o comandante da Revolução Cubana agora falava como presidente. ;Nossa revolução nasceu de uma pequena semente, que hoje se converteu em uma árvore gigantesca; o sonho secular de ontem transformado em uma linda realidade de hoje, vontade do povo convertida já em um pedaço irreversível da história;, declarou, arrancando aplausos.
A árvore de Fidel cresceu à custa da repressão política, seguindo-se fiel à cartilha do socialismo. Meio século depois da queda do ditador Fulgencio Batista e 34 anos após o pronunciamento em Havana, um acuado Raúl Castro ; irmão de Fidel e atual presidente ; se viu obrigado a fazer raras concessões. O acordo firmado entre a Igreja Católica e o regime de Raúl, sob a mediação da Espanha, permitiu a libertação de 52 dissidentes detidos durante a chamada Primavera Negra, em maio de 2003. Opositores cubanos e analistas consultados pelo Correio avaliam que o colapso da economia ameaça a sobrevivência do governo, ante uma possível insurreição popular.
;Não há dúvidas de que Cuba enfrenta uma situação econômica difícil, como ficou evidenciado na dificuldade de cumprir com obrigações a curto prazo de crédito de comércio;, afirma William LeoGrande, especialista em política na América Latina pela American University, sediada em Washington. Ele ressalta que, em seus recentes discurso, Raúl Castro sempre tem abordado os problemas estruturais mais profundos enfrentados pela economia. ;Também é óbvio que a ilha gostaria de melhorar as relações com os Estados Unidos e com a União Europeia (UE);, acrescenta.
LeoGrande lembra que a questão dos direitos humanos tem sido um entrave para um intercâmbio comercial com europeus e norte-americanos. ;O presidente Barack Obama tem indicado que a democracia e os direitos humanos são temas importantes e que o movimento de Cuba nessas áreas seria determinante para o fortalecimento dos laços bilaterais;, comenta. ;Cuba fez um importante gesto e, agora, aguarda reciprocidade por parte da Casa Branca;, conclui. O que torna mais forte a versão de uma possível intervenção de Washington é o fato de o cardeal cubano Jaime Ortega ter se reunido, na capital dos EUA, com Arturo Valenzuela, subsecretário adjunto para a América Latina. O encontro, segundo o jornal espanhol El País, teria ocorrido entre 21 e 27 de junho.
Diretora da Iniciativa de Política EUA-Cuba ; da New America Foundation ; e editora do blog The Havana Note, a norte-americana Anya Landau French lista a morte do ativista Orlando Zapata Tamayo e a repressão do governo ao movimento Damas de Branco como fatores decisivos para a libertação dos prisioneiros. No entanto, admite que o gesto castrista de benevolência teria outro motivo. ;Provavelmente, é uma tentativa de Raúl de remover da agenda algo que mais preocupa a liderança cubana: a questão econômica;, observa. Ainda que oficialmente o regime não reconheça essa vulnerabilidade.
O jornal Granma, órgão do Partido Comunista, não tem divulgado uma linha sequer sobre os ex-prisioneiros políticos acolhidos pela Espanha. Na última sexta-feira, curiosamente, veiculou uma reportagem com a manchete ;Aumenta a percepção da pobreza na União Europeia;. Anya suspeita que Raúl procura modos de aliviar as pressões internas. ;De qualquer modo, o acordo firmado com a Igreja demonstra que o engajamento pode funcionar;, destaca.
Além do impacto provocado pela crise financeira mundial, Cuba precisa lidar com um modelo econômico ultrapassado, incapaz de se sustentar. Um dos últimos rincões do socialismo ; ao lado da Coreia do Norte ;, a ilha caribenha também se vê acossada pelo embargo comercial imposto pelos Estados Unidos, em 7 de fevereiro de 1962. ;Se os EUA levantassem a proibição de viagens e aliviassem as regras para a exportação de alimentos, provocariam um impacto importante sobre a melhora de renda dos cubanos e sobre a habilidade do regime cubano em cumprir com as necessidades de importação;, explica Anya. Sejam quais forem as razões, a decisão de Cuba de libertar os presos devolve a bola aos EUA, já que Obama tem feito repetidos apelos para que Havana emitisse um sinal, antes que os EUA se movessem adiante.
Aposta em mais reformas
Uma das poucas vozes da oposição atuantes na ilha socialista, a jornalista cubana Yoani Sánchez ; criadora do blog Generación Y ; reconhece que o colapso econômico em Cuba levou a frustração a seu ponto mais alto. Ela cita como exemplos a frequente migração dos mais jovens, que cada vez mais tentam alcançar Miami, arriscando a própria vida. De acordo com a ativista, a crise também teria causado desânimo e apatia em pessoas que, até poucos anos atrás, eram fiéis escudeiras do governo. ;Esses elementos forçaram o governo a realizar reformas e a proceder a uma abertura que passou a ser obrigação;, diz Yoani. Segundo a blogueira, corre o boato em Havana de que Raúl Castro divulgará um pacote de amplas reformas econômicas no próximo dia 26. ;Nós, cubanos, temos um apetite enorme por liberdade. Qualquer pacote que nos permita criar empresas, entrar e sair livremente do país, comprar e vender casas, se reverterá em uma mudança política;, observa, lembrando que a gestão econômica está invariavelmente ligada à autonomia política. ;Se Raúl deseja ensaiar uma gestão econômica de controle político, precisa saber que isso não funcionará;, alerta.
Yoani relata a dificuldade de sobrevivência em Cuba. ;Vivemos basicamente graças ao mercado negro e à velha alternativa ilegal de distribuição de roupas e de informação;, comenta. Ela relata que, desde a Revolução Cubana, a população se vê obrigada a recorrer a produtos contrabandeados, a fim de ;alimentar os filhos e colocar sapatos nos seus pés;. ;Aqui em Cuba, a sobrevivência diária se deve à criatividade. A cada dia, temos que ultrapassar a linha da ilegalidade;, desabafa.
A apenas 367km a sudoeste de Havana, do outro lado do Estreito da Flórida, Ramón Saúl Sánchez ; fundador do Movimento Democracia e uma espécie de líder dos exilados cubanos ; acompanha com atenção os sinais de progresso em sua terra natal. ;Há uma crise econômica muito aguda em Cuba, uma situação crítica de liquidez financeira, o que põe em perigo a estabilidade social;, observa. Ele exorta Raúl Castro a libertar todos os presos políticos, a fim de que o mundo encare esse processo como um legítimo desejo político de recomeço. ;Os países precisam ver um aceno no sentido do reconhecimento dos direitos de todos os cubanos, da reunificação de famílias divididas e da despenalização da livre expressão;, acrescenta Ramón.