Jornal Correio Braziliense

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Rússia e EUA vão trocar prisioneiros

Juíza americana manda deportar 10 acusados. Moscou decide libertar quatro condenados

Passadas duas décadas do fim da Guerra Fria, Washington e Moscou reviviam o clima, o cenário e o roteiro das tramas de espionagem que permearam quatro décadas de conflito. Era aguardada para a noite de ontem a deportação de 10 acusados de integrar uma rede de inteligência a serviço da Rússia, capturados na semana passada. Em troca, o governo russo aceitou libertar ; e expulsar ; quatro condenados por espionagem em favor dos Estados Unidos.

O pronto desenlace da crise, que motivou uma troca de acusações entre as duas potências e ofuscou recentes avanços negociados pelos presidentes Barack Obama e Dmitri Medvedev, foi sacramentado durante audiência sumária em um tribunal federal de Nova York. A juíza Kimba Wood ordenou a imediata deportação dos acusados, mediante compromisso de jamais retornar ao país ; a não ser com autorização extraordinária do procurador-geral ;, segundo um acordo acertado entre promotores e advogados. Os 10 supostos espiões declararam-se culpados de ;conspirar para agir como agentes estrangeiros irregulares;, delito punível com no máximo de cinco anos, porém sem pena mínima.

As especulações sobre uma troca, que circulavam insistentemente desde a véspera, foram confirmadas oficialmente coincidindo com o início da audiência em Nova York. ;A disposição-chave no acordo (entre Washongton e Moscou) é que a Federação Russa aceitou libertar quatro indivíduos presos na Rússia por suspostos contatos com agências de inteligência do Ocidente;, informou um comunicado do Departamento de Justiça. Até o fechamento desta edição, não haviam sido confirmados os nomes dos quatro prisioneiros a serem libertados, mas era dada como certa a inclusão de Igor Sutiagyn, especialista em armas, que segundo versões de imprensa teria sido enviado para Viena, na Áustria.

Foi a movimentação em torno de Sutiagyn que convenceu os jornais russos da iminência de uma troca. Parentes do prisioneiro, que cumpre pena há 11 anos, revelaram que ele tinha sido transferido de um presídio distante para a prisão de Lefortovo, em Moscou. Um passaporte teria sido emitido para sua viagem. Outros possíveis beneficiados pelo acordo seriam Sergei Skripal, coronel da inteligência russa condenado em 2006 a 13 anos de prisão por passar informações ao Reino Unido, e Aleksander Zapojsky, ex-agente da inteligência externa que já cumpriu sete anos de uma sentença de 18 anos de prisão.

Ruiva fatal
Entre os 10 espiões da rede russa desbaratada nos EUA, as atenções da mídia se concentraram sobre uma suposta consultora de microempresários, Anna Chapman, uma ruiva insinuante de 28 anos que se mudara para Nova York no início do ano, recém-divorciada. Graças a fotos cedidas pelo ex-marido, a imprensa americana passou a chamá-la de femme fatale (mulher fatal). Desde a manhã de ontem, jornais russos como o Gazeta e o Kommersant citavam ;fontes oficiais; segundo as quais Anna seria enviada a Moscou anonimamente.

Durante a breve audiência, cada um dos acusados limitou-se apenas a responder ;sim, meritíssima; quando a juíza perguntou sobre a acusação assumida por todos. Embora questionados sobre o assunto, os advogados disseram desconhecer possíveis ofertas feitas pela Rússia para que os acusados aceitassem o acordo. A exceção foi John Rodríguez, defensor da jornalista peruana Vicky Peláez. Segundo Rodríguez, sua cliente teria recebido a promessa de moradia na Rússia e uma pensão vitalícia de US$ 2 mil mensais, além de vistos e viagens com despesas pagas para que os filhos a visitem, caso aceite radicar-se no país.

Memória
Teatro da Guerra Fria

Silvio Queiroz


As quatro décadas da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a hoje extinta União Soviética reúnem matéria-prima mais do que farta para a literatura de espionagem, mas o episódio de Francis Gary Powers, oficial da Força Aérea norte-americana, resume todos os ingredientes de uma trama digna do cinema ; culminando justamente em uma troca de prisioneiros.

Powers realizava em 1960 uma missão de reconhecimento de instalações militares soviéticas na Sibéria, a bordo de um avião U-2, na época a última palavra em equipamento de espionagem aérea. Foi abatido por um novo sistema de mísseis e capturado, em data que parece escolhida a dedo: 1; de maio, uma das datas magnas do regime comunista. Pior: não teve tempo de acionar o sistema de autodestruição da aeronave.

Sem saber que o U-2 havia sido encontrado praticamente intacto pelo inimigo, o governo americano relatou publicamente a queda de um ;avião meteorológico;. A vantagem estratégica não escapa ao então líder soviético, Nikita Krushev, que acrescenta ao caso o elemento teatral: ele rompe ruidosamente as conversações que mantinha com o presidente dos EUA, Dwight Eisenhower, e passa a exigir o reconhecimento público da ;agressão; e um pedido formal de desculpas.

A URSS obteve de Powers uma ;confissão voluntária; sobre a missão. Em 10 de fevereiro de 1962, já com John Kennedy na Casa Branca, o piloto do U-2 foi trocado por um coronel da KGB, em um dos cenários mais emblemáticos da Guerra Fria: a ponte de Glienicke, em Berlim, recém-dividida pelo muro que simbolizou até 1989 o conflito entre as duas superpotências.