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Com a demissão do comandante no Afeganistão, Barack Obama dá recado aos generais sobre desafios à hierarquia

;Não vou tolerar divisões;, anunciou o presidente Barack Obama, na última quarta-feira, após aceitar a renúncia do comandante das tropas americanas no Afeganistão, general Stanley McChrystal. Mais do que uma explicação para a decisão de tirar o militar do posto, foi um aviso para quem fica ; no Afeganistão, dentro das Forças Armadas ou no restante do governo. É que a visível insubordinação de McChrystal parece não se limitar a ele, e Obama, há menos de um ano e meio na Casa Branca, não escapará da difícil tarefa de lembrar a todos quem é que está no comando.

O caso do general foi o mais gritante exemplo das fissuras no governo do jovem democrata. Primeiro, pela objetividade das críticas ; elas foram documentadas pela badalada revista Rolling Stone, que tem tiragem de 1,4 milhão de exemplares. Depois, por terem vindo de um militar de alta patente, que tem como obrigação primordial respeitar a hierarquia. Entretanto, Obama enfrenta problemas de grave discordância na seu círculo mais próximo, em Washington. ;Há uma resistência perceptível no Departamento de Estado, no próprio Departamento de Defesa e até na base democrata na Câmara dos Deputados;, aponta a especialista em Estados Unidos da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Cristina Pecequilo.

Para ela, é evidente que a visão da Casa Branca para política externa, por exemplo, difere muito da posição da diplomacia americana. ;O Obama diz uma coisa e o Departamento de Estado faz tudo diferente. O fato é que ele não está conseguindo impor suas políticas. Tem algum problema na cadeia (de comando);, avalia Pecequilo. Ela cita ainda as brigas entre diferentes agências do governo e a pressão feita pelos ;falcões liberais; ; membros do próprio Partido Democrata, como a secretária de Estado, Hillary Clinton, que defendem posturas mais duras em temas como o Irã.

O cientista político da Universidade Estadual de Michigan William Allen, entretanto, acredita que as discordâncias entre a Casa Branca e os diversos departamentos não são exclusividade da administração Obama. ;Sussurros sobre a incompetência de um presidente são comuns em todo o mundo. Nos EUA, a existência de visões conflitantes também é bastante comum. É só lembrar de Colin Powell como secretário de Estado, de Condoleeza Rice como diretora do Conselho de Segurança Nacional e de Donald Rumsfeld como secretário da Defesa, no governo de George W. Bush;, exemplifica. Para Allen, o que dimensiona a competência de um presidente é a capacidade de administrar todos esses embates.

Personalidade
Pecequilo, contudo, acredita que o que o governo Obama tem enfrentado só foi visto antes com o também democrata Jimmy Carter (1977-1981). ;Bush, no seu governo, conseguiu fechar uma posição e, mesmo quando havia republicanos que discordavam, isso não era tão vociferante. O caso de cisão mais recente mesmo foi com o Carter;, lembra. O motivo, agora, seria a própria personalidade de Obama, além de sua maneira de governar. ;Tem o fato de ele ser um político jovem, mas não é só isso. O Obama gosta de dialogar e muitas vezes tem essa postura de não querer desagradar. Mas, às vezes, é preciso bater de frente.;

O especialista Ray Walser, da Fundação Heritage, think tank conservador de Washington, considera que o desempenho ruim do presidente é a principal causa das fissuras no governo. ;Por causa da insatisfação com Obama, há um setor importante da opinião pública no qual o respeito pelo presidente e pelo poder da Casa Branca está em declínio;, afirma. Walser destaca que a falta de respeito acaba se manifestando em ;diversas formas de incivilidade;, como o caso do deputado republicano Joe Wilson, que chamou Obama de ;mentiroso; durante um discurso. Também para Allen, o principal culpado pela fraqueza no comando é o próprio chefe de Estado: ;Existe apenas uma razão para o desrespeito demonstrado com Obama: incompetência;.

Hierarquia ofendida

Confira os casos de ;insubordinação; militar que tiveram o mesmo desfecho nos EUA

Disputa entre as forças
O secretário da Marinha americana em 1949, Francis Matthews, pediu a cabeça do então chefe de Operações Navais, almirante Louis Denfeld, depois que este reclamou da falta de financiamento por conta de investimentos maiores no programa da B-36 da Força Aérea. A equipe de Denfeld chegou a apontar ;irregularidades; na licitação do programa.

O mais emblemático
Em abril de 1951, o general Douglas MacArthur, comandante das forças americanas na Guerra da Coreia, foi demitido pelo presidente Harry Truman após criticar abertamente decisões do presidente sobre a condução da guerra. MacArthur chegou a afirmar que os postos da administração americana na Ásia eram a ;derrota no Pacífico;. Anos depois, Truman revelou que esteve prestes a ;jogar MacArthur no Mar da China;.

Dedo-duro
O general Michael Dugan, que estava à frente da Força Aérea, foi destituído em 1990 após admitir, em entrevista ao jornal The Washington Post, que o líder iraquiano, Saddam Hussein, era ;o alvo de todos os esforços; na Guerra do Golfo. O governo de Bush pai negava que fosse esse o real foco da ofensiva.

O mais recente
Em março de 2008, o comandante das tropas dos EUA no Oriente Médio, almirante William Fallon, ;apresentou sua renúncia; ao secretário de Defesa, Robert Gates. O motivo? Fallon concedeu entrevista à revista Esquire na qual ficou evidente sua oposição aos planos do governo Bush para o lançamento de uma ofensiva militar contra instalações nucleares do Irã.

;Ideias muito próprias;
Foi também uma entrevista, dessa vez à inusitada revista Rolling Stone, que colocou outro general na alça de mira da Casa Branca. Stanley McChrystal, comandante das forças americanas no Afeganistão, foi levado a deixar o posto depois de criticar, com seus assessores, a maneira como o governo Obama tem conduzido a guerra.


;Calouro; entre oficiais

Muitos argumentam que a análise das críticas feitas por Stanley McChrystal e por seus assessores à revista Rolling Stone não deve se ater à questão da insubordinação ou da falta de respeito dos generais em relação ao comandante em chefe das Forças Armadas. Examinadas no âmbito militar, elas evidenciam um problema grave da política dos Estados Unidos para o Afeganistão e não podem ser desconsideradas, segundo especialistas. ;Embora McChrystal tenha falado demais em público, seus comentários mostraram um reconhecimento das deficiências da atual estratégia norte-americana em solo afegão;, afirma o especialista do Instituto Cato Patrick Basham.

O grupo Move America Forward, formado por veteranos e militares reformados, lançou nota na última semana apoiando as declarações de McChrystal sobre o ;desengajamento; de Obama com a guerra no Afeganistão. ;Num momento em que os EUA estão em guerra, em que a maior ameaça para a segurança americana é o terrorismo islâmico, é inaceitável e indesculpável que o governo esteja desinformado e desinteressado em vencer a guerra no Afeganistão;, afirma o diretor de comunicação do grupo, Danny Gonzalez.

O termo ;vencer;, por sinal, é um dos pivôs do problema. Autor da matéria da Rolling Stone, o jornalista Michael Hastings destacou em entrevista à rede de televisão árabe Al-Jazeera que o fato de Obama não usar esse vocabulário já é um indicador da discrepância entre o comandante em chefe e seus subordinados. ;Eu acho que, assim como outros americanos, McChrystal respeita Obama por muitas razões ; até votou nele;, afirmou Hastings. ;Mas no campo militar é diferente. Falta respeito a Obama por muitas razões. Uma delas é que o presidente não usa palavras como ;vitória; e ;vencer;, quando os militares adoram esse tipo de palavra;, completou.

Na reportagem, fica ainda claro que o grupo mais próximo a McChrystal vê Obama como um líder inexperiente e fraco. ;O primeiro encontro entre o general e o presidente se deu apenas uma semana depois de o militar assumir seu posto, quando Obama se reuniu com uma dúzia de oficiais militares de alto escalão em uma sala do Pentágono conhecida como ;o tanque;. De acordo com fontes informadas sobre a reunião, McChrystal achou que Obama parecia ;pouco à vontade e intimidado; pela sala cheia de militares condecorados;, destaca a matéria.

Para Ray Walser, da Fundação Heritage, no entanto, as discordâncias e as críticas não deveriam mesmo ter sido expostas. ;Entre os soldados e a estrutura de comando civil, há diferenças fundamentais nas visões sobre as relações com líderes do Afeganistão, táticas, horários, recursos ; mas isso deveria ter permanecido nos bastidores;, opina. (IF)