Em frente à Mesquita Fatih (Conquistador, em árabe), os nove caixões foram perfilados, sobre placas de mármore. Estavam cobertos com as bandeiras da Turquia, da Autoridade Palestina e do movimento fundamentalista islâmico Hamas. Na primeira fileira, os imãs, líderes religiosos muçulmanos, prestavam reverência aos mortos. Atrás deles, dezenas de milhares de turcos voltavam os punhos para o alto e gritavam: ;Maldito Israel! Israel é o anjo da morte!” e ;Nós somos todos soldados do Hamas;. Perto do santuário, uma enorme faixa com as cores palestinas e os dizeres ;Louvado seja o seu sacrifício;. Além dos oito turcos assassinados no ataque à flotilha humanitária Liberdade, os Estados Unidos confirmaram a identidade do nono morto, o norte-americano Furkan Durgan, 19 anos. A secretária de Estado, Hillary Clinton, exigiu que Israel investigue ;rapidamente; o incidente da última segunda-feira.
;Dezenas de milhares de pessoas vieram à cerimônia. Mensagens condenando essa ação foram lidas durante o funeral;, contou ao Correio o turco Izzet Sahim, coordenador de ações internacionais da Fundação para os Direitos Humanos, Liberdades e Ajuda Humanitária (IHH). ;Todos no mundo entenderam o crime contra a humanidade cometido por Israel. Estamos cuidando de nossos irmãos feridos e ainda não decidimos a posição que tomaremos, mas esperamos que Israel suspenda o cerco a Gaza e não haja a necessidade de mais flotilhas;, disse.
Enquanto o luto tomava conta das ruas de Istambul, o governo de Ancara disparava munição de críticas e de ameaças contra Telavive. O primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, avisou que ;Israel está a ponto de perder seu principal aliado no Oriente Médio, se não mudar sua mentalidade;. ;A Turquia tentou preservar seu relacionamento, mas o governo israelense não entendeu isso, e cometeu um erro histórico;, afirmou, no dia em que conversou com os feridos no hospital, em Ancara. O presidente turco, Abdullah Gül, admitiu: ;A partir de agora, as relações nunca mais serão as mesmas;. O premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, reagiu prometendo aliviar o bloqueio a Gaza (leia ao lado).
Durante visita à cidade de Corum (nordeste), o chefe de Estado disse ainda que a operação militar contra os barcos da organização não-governamental turca Fundação para os Direitos Humanos, Liberdades e Ajuda Humanitária (IHH) deixará ;sequelas irreparáveis; nas relações bilaterais. Além de funcionar como uma espécie de ;garantia de segurança; a Israel no Oriente Médio, a Turquia ; 99,8% da população é de muçulmanos ; mantém uma cooperação de defesa com Telavive da ordem de US$ 2,6 bilhões.
O indiano Muqtedar Khan, cientista político da Universidade de Delaware (Estados Unidos) e renomado intelectual muçulmano, acredita que as relações israelo-turcas já têm sofrido modificações substanciais. ;A Turquia está buscando a liderança no mundo muçulmano. Todos os países árabes são fracos e o Irã é quase uma nação pária;, explica. ;Já Israel tornou-se mais beligerante e, ao ver o relacionamento com os EUA enfraquecido, tornou-se alvo fácil dos árabes.;
Por sua vez, o britânico George Joffe ; pós-doutor em relações internacionais e especialista em Oriente Médio pela Universidade de Cambridge ; lembra que Erdogan tem aumentado a hostilidade em relação às políticas de Israel para Gaza. ;À luz dos recentes incidentes com a flotilha, é extremamente difícil imaginar que as relações possam ser restauradas à amenidade anterior. Suspeito que elas serão distantes;, admite, em entrevista por e-mail. ;Israel acaba de perder seu principal aliado no Oriente Médio;, concorda. Segundo Joffe, os EUA vão considerar a Turquia um aliado menos obediente, especialmente se Israel for autorizado a realizar a investigação. ;Estamos assistindo a um realinhamento de relações no Oriente Médio, com a Turquia se movendo de volta para o mundo árabe e para o Irã;, comenta.
Joffe não tem dúvidas de que ;as relações entre os dois países permanecerão tensas e potencialmente hostis;. ;A Turquia fornecia espaço tático a Israel, era uma ameaça implícita constante aos países árabes, permitia a presença de israelenses como turistas e se apoiava ao Curdistão iraquiano. Tudo isso se foi e, provavelmente, não será recuperado. Do ponto de vista de Israel, é uma calamidade;, acrescenta.
Eu acho...
;As relações entre Israel e Turquia têm se deteriorado desde o último ano. É claro que o ataque à flotilha humanitária vai tornar as coisas ainda piores. O que temos visto também é que a Turquia não pediu a Israel para retirar seu embaixador de Ancara. Isso é um bom sinal. Ainda que a Turquia tenha chamado seu embaixador em Israel para consultas. A Turquia tem sido muito cuidadosa ao pedir que a população turca não acuse os judeus. Não acredito que essa crise entre os dois países termine em rompimento diplomático.;
Alon Ben-Meir, professor de relações internacionais da Universidade de Nova York
Arquivo Pessoal
;Esse episódio pode enlamear definitivamente o relacionamento entre Turquia e Israel. Isso porque Israel não tem qualquer outro aliado no mundo muçulmano e no Oriente Médio. Além disso, o processo de paz entre Israel e Síria pode sofrer um retrocesso, já que Damasco não confia no papel dos Estados Unidos como um mediador honesto. Se a Turquia tornar-se um apoiador ativo do movimento palestino, então se tornará um grande desafio para Israel.;
Muqtedar Khan, cientista político da Universidade de Delaware
Bloqueio pode ser reduzido
A pressão mundial contra o bloqueio à Faixa de Gaza pode ter surtido algum efeito. Segundo informaram ontem duas emissoras de televisão israelenses, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu planeja aliviar as restrições.
De acordo com a emissora pública do Estado judaico, Netanyahu poderá permitir que navios mercantes cheguem até a costa do território palestino, desde que concordem com uma inspeção prévia em suas cargas. Já o Canal 10 (emissora privada) acrescentou que a comunidade internacional poderá eventualmente acompanhar as inspeções a serem realizadas nos carregamentos civis.
As duas emissoras disseram ainda que a medida seria uma forma de o governo israelense aliviar um pouco as pressões e críticas internacionais que vem sofrendo, ao mesmo tempo em que conseguiria barrar a entrada de armas em Gaza. Depois do ataque realizado na segunda-feira à flotilha humanitária que tentava levar alimentos e mantimentos à área bloqueada, o Estado judaico ficou isolado na comunidade internacional, que recriminou em peso a ação.
Bombardeio
Em meio à repercussão internacional sobre o episódio, o sul de Israel foi atingido ontem por dois foguetes que teriam sido disparados da Faixa de Gaza. Segundo informações de uma porta-voz do Exército israelense, os ataques não deixaram vítimas.
;Os dois projéteis caíram na região de Ashkelon, ao sul de Tel Aviv, e não causaram nem feridos, nem danos;, disse a porta-voz militar à agência de notícias AFP. Desde o começo de 2010, 60 foguetes e obuses disparados da Faixa de Gaza caíam no território de Israel, segundo dados divulgados por Israel.