A caminho de Portugal, onde mais de 88% da população são católicos, o papa alemão Bento XVI fez ontem seu discurso mais claro e deu sua mensagem mais incisiva contra os crimes de abuso sexual de menores. Ainda no avião, o líder da Igreja Católica reconheceu a jornalistas que a instituição tem lições a aprender e que ;o perdão não substitui a justiça;. ;Sempre soubemos, mas hoje nós vemos de uma forma verdadeiramente terrível que a grande opressão da Igreja não vem de inimigos externos, mas nasce do pecado dentro da Igreja;, afirmou o papa.
Já em Lisboa, diante do Mosteiro dos Jerônimos, Bento XVI foi recebido por milhares de pessoas que acenavam lenços brancos e vestiam camisetas com mensagens de boas-vindas. Em todo o país, as escolas e as repartições públicas foram fechadas. A crise fiscal não impediu o governo do presidente socialista, Aníbal Cavaco Silva, decretar feriado, a fim de que os funcionários públicos assistissem às missas. A cúpula católica portuguesa já tinha garantido que a visita papal não seria ;obscurecida por escândalos, apesar da distribuição prevista de mais de 25 mil preservativos por militantes da luta contra a aids;. ;Trata-se de receber um chefe de Estado, e não de fazer qualquer tipo de propaganda;, afirmou o porta-voz do episcopado, padre Manuel Morujão, destacando que o pontífice falaria a todos os portugueses ; católicos ou não.
A segunda viagem do papa ao exterior este ano marca distância da visita à ilha de Malta, no mês de abril. Na ocasião, o líder religioso foi inundado pelas críticas devido aos casos de pedofilia envolvendo padres. Os escândalos começaram a ser publicados pela imprensa norte-americana e se alastraram pelos meios de comunicação em todo mundo, revelando crimes cometidos por religiosos há vários meses e até anos (leia a entrevista nesta página).
Para o vaticanista Filippo di Giacomo, a mensagem de ontem ;supõe a condenação mais radical já pronunciada pelo papa sobre a linha de atuação de seu antecessor, Karol Wojtyla;. ;Trata-se de um exemplo de honestidade intelectual, que inclui um agradecimento implícito aos meios de comunicação que informaram sobre os abusos, para ajudar-lhe a determinar a verdade e fazer limpeza na Cúria Romana;, afirmou Giacomo.
O também vaticanista Andrea Tornielli concorda, apesar de considerar a carta dirigida aos católicos na Irlanda como o discurso mais importante até o momento. ;Quando Bento fala sobre o escândalo, ele nunca ataca a mídia, nunca fala sobre uma armação contra a Igreja, o Vaticano ou o papa;, disse Tornielli ao Correio, por e-mail. Ele destacou a ;coragem; do pontífice. ;O papa não decidiu denunciar ou criticar uma armação, uma perseguição de inimigos externos contra a Igreja. Ele reconhece, sincera e humildemente, a verdade e indica a necessidade da Igreja em reaprender a penitência;, completa. Por outro lado, o jornalista espanhol Rafael Plaza considera que a última mensagem do papa contradiz ;bispos e cardeais romanos que dirigiram suas críticas aos meios de comunicação e à sociedade ;descristianizada;;. ;Com sábia astúcia, ele dirige suas críticas à sujeira existente no interior da Igreja;, comentou Plaza.
Revelações
Bento XVI também fez uma releitura do terceiro segredo de Fátima, que teria sido revelado em uma aparição da Virgem Maria a três crianças portuguesas (Jacinta, Francisco e Luzia), em 1917. Quando ainda era ainda Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o segredo se referia a um bispo vestido de branco, que cairia ao chão por causa de disparos. O pontífice afirmou ontem que esse segredo, ;além da missão de sofrimento do papa, que em primeira instância podemos relacionar com o atentado a João Paulo II (por Ali Agca, em 1981), na mensagem de Fátima há indicações sobre a realidade do futuro da igreja;. Como resposta ;fundamental; aos problemas da instituição religiosa, o pontífice indicou a ;conversão permanente, penitência, oração e as virtudes cardinais: fé, esperança e caridade;.
Hoje, Bento XVI fará uma peregrinação ao famoso santuário de Fátima, destacando que as visões das três crianças falavam de ;sofrimentos da Igreja que se anunciavam;. ;O Senhor disse que a Igreja sofrerá até o fim do mundo. E isso é o que vemos hoje;, disse. As ruas da cidade-santuário foram perfumadas, deixando no ar um leve odor de limão. No último domingo, Bento XVI havia exortado os fiéis a ;acompanharem a peregrinação, rezando pela Igreja e, em particular pelos padres;.
Ouça áudio com David Clohessy, vítima de abuso sexual por parte de padre nos EUA (em inglês)
; ;As palavras não protegem as crianças;
Rodrigo Craveiro
Já se passaram 37 anos e as feridas na alma do norte-americano David Clohessy ainda parecem longe de se cicatrizar. Foi na transição da infância para a adolescência que sua fé e seu corpo acabaram violentados. Por dúzias de vezes, o padre John Whiteley ; da paróquia de Moberly (Missouri) ; molestou-o sexualmente. Três de seus irmãos também se viram obrigados a ceder às perversões do reverendo. Um deles tornou-se padre e, ironicamente, cometeu o mesmo crime. Diretor nacional da Rede de Sobreviventes de Abusados por Padres (Snap, pela sigla em inglês) e advogado de vítimas de religiosos pedófilos, Clohessy falou com exclusividade ao Correio, por telefone, de St. Louis (Missouri). O ativista de 53 anos não se comoveu com as palavras do papa alemão Bento XVI. Pelo contrário, acusou o líder da Igreja Católica de inércia e disparou: ;São apenas palavras;.
Ao falar sobre o escândalo de pedofilia na Igreja,Bento XVI lembrou que o perdão não pode substituir a justiça.Como o senhor vê esse discurso?
Palavras mais fortes, palavras mais claras, palavras de moral. O fato é que são apenas palavras. E palavras não protegem crianças. A ação protege as crianças. Acho que é hora de o pontífice parar de falar e começar a dar passos decisivos para deter abusos de crianças cometidos por clérigos ao redor do mundo. Vai demorar mais de 100 discursos para que a mudança ocorra e o papa use seu vasto poder para punir os bispos corruptos, expor os padres criminosos e reformar leis seculares da Igreja. Acredito que essa é, definitivamente, a pior crise da história da Igreja Católica, uma instituição muito resiliente. A legitimidade e a credibilidade do clero estão ameaçadas.
Quais passos decisivos são cruciais para combater esses crimes?
Até o momento, a resposta do papa tem sido muito fraca. Acreditamos que ele precisa disciplinar os bispos que ignorarem ou ocultarem crimes sexuais contra crianças. Esse é o único e importante passo que o papa pode tomar e que deveria tomar. Enquanto as autoridades da Igreja colocarem as crianças em perigo e nunca enfrentarem consequências, os bispos continuarão continuarão a agir de forma covarde e secreta.
Por que tantos casos de abuso sexual têm surgido na Igreja Católica? Esses crimes estão ligados ao celibato?
Acredito que as razões são complicadas. A resposta mais contundente é que os padres molestam garotos, e os bispos escondem os crimes apenas porque eles podem fazê-lo. Muito poucos padres foram detidos e processados, e muito poucos bispos receberam punição. É ingênuo esperar que crimes desse tipo não ocorram. Existe uma cultura do segredo dentro da Igreja que leva a ocultar crimes sexuais.
O senhor poderia descrever como sofreu os abusos? O que mudou na sua vida desde então?
Eu fui abusado dúzias e dúzias de vezes por um período de cinco anos, dos 11 aos 16 anos, por um padre que ainda está livre e jamais recebeu qualquer tipo de punição. Isso me deixou com muita depressão e me levou a perder a fé. Também trouxe muita dor à minha família, pois o mesmo padre molestou três de meus irmãos. Um deles tornou-se padre e também cometeu abusos contra crianças. Foi um efeito devastador na minha família. O padre que me violentou nunca disse uma palavra sequer. Ele me levava a passeios fora da cidade, para acampar, fazer montanhismo ou ir para a praia. E abusava de mim no meio da noite. Eu era jovem e estava amedrontado. Não sabia o que estava ocorrendo. Em muitos casos, padres não precisam ameaçar ou coagir as vítimas, que são treinadas para respeitar e obedecer os religiosos
; DEPOIMENTO
"Um padre me molestou durante vários anos"
Barbara Blaine
"O papa Bento XVI presta um desserviço a crianças, vítimas, e católicos, ao tentar perpetrar o mito de que a Igreja é, de alguma forma, vítima em sua crise de pedofilia e acobertamento. As crianças são vítimas -- aquelas que têm sido devastadas e aquelas que estão sendo devastadas. Ele parece incapaz até mesmo de descrever a crise de modo útil, preciso e apropriado, muito menos de efetivamente resolvê-la. Muitas vítimas estão cansadas de escutar sobre seus ;fortes comentários;. Elas querem forte ação.
Quando o papa começará a pelo menos denunciar padres predadores e a disciplinar bispos cúmplices, para que as crianças tenham masi seguras, a verdade seja revelada e a justiça se faça? Quando ele vai parar de falar e começar a agir?
O padre assistente de minha igreja São Pio X, em Toledo (Ohio), começou a abusar de mim durante o verão. Eu tinha 12 anos. Ele me molestou durante vários anos e fazia eu acreditar que era tudo minha culpa. Ele ameaçou que coisas ruins aconteceriam, caso eu contasse para alguém. Mas eu estava tão embaraçada e me sentindo tão suja e envergonhada. Não fui capaz de dizer a ninguém até que eu chegasse à idade adulta.
Quando finalmente contei aos meus pais, papai disse: ;Nós temos que reportar isso ao bispo;. Ele não disse: ;Nós temos que reportar isso à polícia;". Se o tivéssemos feito, teríamos impedido que outras crianças fossem abusadas. O padre Chet Warren, que abusou de mim, começou os abusos em 1969. Até 1992, ele ainda não havia sido removido do sacerdócio.
As consequências do abuso para os sobreviventes incluem uma sensação cescente de insegurança e inferioridade, dificuldade em acreditar em pessoas na posição de autoridade, desordem de estresse pós-traumático, depressão, ansiedade, distúrbios alimentares, vícios de drogas e álcool, dificuldade em conter a raiva, dificuldades com intimidade e em desenvolver relações entre casais"
Barbara Blaine é fundadora e presidenta da Rede de Sobreviventes de Abusados por Padres (Snap, pela sigla em inglês)