O Cristo crucificado, diante das ruínas da Igreja de Sacre-Coeur, em Porto Príncipe, parece evidenciar o sofrimento de um país golpeado pelo imponderável. Em 12 de janeiro passado, um terremoto de magnitude 7 na escala Richter matou pelo menos 222 mil pessoas e deixou 1,3 milhão de desabrigados no Haiti. Apenas 46 dias depois, a região centro-sul do Chile viu ondas de até 40m engolirem casas, lançarem barcos no meio das ruas e arrastarem turistas e moradores. O tremor de magnitude 8.8 espalhou um rastro de destruição e medo nas regiões do Maule e de Bío Bío, em 27 de fevereiro. Pelo menos 802 chilenos morreram, pontes, casas e prédios ficaram reduzidas a escombros ; os prejuízos somariam pelo menos US$ 30 bilhões. As dimensões humanas das duas catástrofes pouco ou nada têm em comum. Apesar de o tremor no Chile ter sido descomunal e bastante raro, causou menos devastação e mortes que o abalo no Haiti, de menor intensidade.
;Não acredito em uma solução que venha de Deus;, desabafou ao Correio o haitiano Antonal Mortimé, secretário executivo da Plataforma das Organizações Haitianas dos Direitos Humanos (POHDH, pela sigla em inglês), baseada em Porto Príncipe. ;Será difícil criar uma dinâmica de participação dos movimentos sociais na definição das políticas públicas;, acrescentou. Ele defende que a reconstrução precisará respeitar os direitos sociais, econômicos e culturais, em especial o acesso à alimentação e à habitação. ;Essa é uma oportunidade para que o Haiti se recupere e respeite os direitos humanos;, disse.
Mas reerguer o centro-sul do Chile também será uma tarefa difícil, na opinião da professora e comerciante Cecilia Sierro, 52 anos, de San Pedro de La Paz, a apenas 5km de Concepción, a cidade mais arrasada. ;É preciso colocar as coisas de pé e começar tudo de novo. Para que tudo volte ao normal, serão necessários meses;, afirma, por telefone.
Explicações
Especialistas consultados pelo Correio explicam porque os dois terremotos surtiram efeitos distintos. Bozidar Stojadinovic, professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade da Califórnia Berkeley, sustenta que o Chile tem duas vantagens importantes sobre o Haiti, no que se refere às práticas de construção civil. ;Em primeiro lugar, os chilenos desenvolveram leis e procedimentos de construção rigorosos, provavelmente tão bons quanto os dos Estados Unidos e da Europa;, comentou, acrescentando que os engenheiros do Chile também são bastante capacitados. ;Em segundo lugar, a legislação da construção exige que as empreiteiras a sigam e construam honestamente.; Ele acredita que a organização do Estado e sua habilidade em cumprir as leis foram determinantes para minimizar a devastação.
Ainda segundo Stojadinovic, a sólida engenharia é um fator importante para prevenir mortes em terremotos, mas não o único. ;Há muitas coisas a serem feitas para se preparar para um terremoto e elas incluem simulações de emergência; armazenamento de água e comida; fortalecimento de pontes, estradas e linhas de abastecimento de água e energia;, observa. Após a terra tremer, ele aconselha os governos a identificarem os danos, focarem-se nos esforços de resgate, ativarem os serviços de emergência, distribuírem ajuda rápida e recuperarem as necessidades básicas da sociedade. Sem histórico de grandes tremores e sem regras de engenharia, o Haiti ficou mais vulnerável à catástrofe.
O geofísico porto-riquenho Rafael Abreu París, do Centro Nacional de Informação sobre Terremotos do Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS), lembra que o Chile tem um registro de alto risco sísmico, incluindo o terremoto de maior magnitude já detectado. Em 1960, um abalo de 9.5 na escala Richter atingiu a região de Valdívia. ;Com base nesses desastres, o Chile obteve amplas evidências para desenvolver medidas antissísmicas eficientes. Bons exemplos podem ser vistos dos vídeos das zonas atingidas, que mostram vários prédios ainda de pé, mesmo sem as fachadas. Várias cidades foram destruídas pelo tsunami, mas nas colinas acima da área inundada muitos edifícios sofreram poucos danos;, exemplifica.
Padrões diferentes
A discrepância no saldo de vítimas de ambos os tremores se explica por uma série de fatores, incluindo o padrão geológico diferente. ;Ainda que os terremotos tenham ocorrido no limite entre duas placas tectônicas, o abalo no Haiti deu-se em uma situação onde uma placa desliza sob a outra e o deslocamento ao longo da falha é horizontal;, explicou Barbara Romanowicz, diretora do Laboratório Sismológico de Berkeley (Califórnia). ;No Chile, a Placa Nazca, do lado do Oceano Pacífico, mergulhou sob a Placa Sul-Americana, e o movimento junto à falha tem um forte componente vertical. Nesse tipo de padrão, os terremotos podem ser maiores, pois o que determina o tamanho do sismo é a área de superfície sobre o qual a falha se rompeu;, acrescentou.
De acordo com Barbara, como a falha sob o Haiti é vertical, sua largura se limitou a menos de 20km ; abaixo dela, as rochas não se rompem. ;No Chile, a falha está em um ângulo raso e na direção horizontal. Então, a largura disponível para que as rochas se partam é bem maior, entre 100km e 150km;, observou. Ela afirma que o fato de o tremor no Haiti ter ocorrido bem debaixo de Porto Príncipe, de alta concentração populacional, foi agravado pela qualidade de construção duvidosa. ;No Chile, populações menores estavam no caminho do abalo mais forte.;
Visita de Ban ki-Moon
O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-Moon, visitou ontem a cidade de Concepción, uma das mais afetadas pelo terremoto que assolou o Chile há uma semana, no momento em que esforços são feitos para normalizar os serviços e fornecer assistência humanitária a milhares de pessoas. Ban ki-Moon chegou à cidade, localizada 500km ao sul de Santiago, no início da manhã e percorreu a região ao lado do chanceler chileno Mariano Fernández, em uma visita que também inclui o porto de Talcahuano, que foi devastado pela tsunami registrada logo depois do terremoto. O secretário-geral se comprometeu a entregar à ONU, na quarta-feira, um relatório com suas recomendações. ;Estou convencido de que a determinação dos chilenos fará com que consigam se reerguer;, disse. ;Entregarei um relatório à Assembleia Geral das Nações Unidas e discutiremos com a comunidade internacional qual é a melhor maneira de as Nações Unidas ajudarem e mobilizarem a assistência humanitária.;
Abalos distintos
Entenda as principais diferenças entre os tremores devastadores no Haiti e no Chile
# CHILE
Magnitude: 8.8
Tamanho da falha geológica: 80 mil km2
Deslizamento médio das placas: 7m
Máximo deslizamento médio: 12m
Características:
# As placas tectônicas deslizaram verticalmente na falha geológica
# Os prédios são projetados para suportar tensões verticais, tais como o peso da estrutura
# Movimentos verticais em falhas geológicas têm mais propensão a criar tsunamis devastadores
# A cidade mais populosa próxima ao epicentro era Chillián, localizada a 100km da origem do tremor
# HAITI
Magnitude: 7
Tamanho da falha geológica: 600km2
Deslizamento médio das placas: 2m
Máximo deslizamento: 5m
Características
# O componente de deslizamento das placas foi horizontal
# As construções são muito vulneráveis às tensões ou estresses horizontais
# O tremor teve como epicentro uma região a apenas 25km da capital Porto Príncipe, onde viviam 3 milhões de pessoas. A capital recebeu a maior parte da energia liberada
# O abalo ocorreu numa profundidade de apenas 10km. Quanto mais profundos os tremores, mais a energia liberada pelos abalos é gasta
Eu acho...
;As construções no Haiti eram, obviamente, muito mais fracas que as do Chile. Os haitianos não tinham o ;benefício; de terremotos frequentes para lembrar-lhes do perigo, para fazê-los construir melhor e, também, tragicamente, se livrar de prédios e casas frágeis, erguidos entre os terremotos. Isso funciona como as leis da seleção natural. Nós construímos e aprendemos como construir melhor durante todo o tempo. Então, nossos prédios se tornam melhores com o tempo.;
Bozidar Stojadinovic, professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade da Califórnia, Berkeley