Jornal Correio Braziliense

Mundo

Pedofilia causa indignação na Santa Sé

Vaticano classifica casos de abuso sexual na Igreja Católica da Irlanda de "odiosos" e papa Bento XVI se reúne com bispos do país

A declaração do cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado do Vaticano, foi o termômetro de como a Santa Sé considera graves os abusos sexuais cometidos contra crianças dentro da Igreja Católica na Irlanda. Diante da tumba do apóstolo Pedro, Bertone dedicou uma missa para 24 bispos irlandeses e, durante a homilia, fez um alerta. ;Suas comunidades vivem uma dura prova, uma vez que alguns clérigos estão envolvidos em atos particularmente odiosos;, disse. Ele aconselhou o episcopado a restaurar a fé e revelou-se preocupado com a possibilidade de o mal empurrar os fiéis rumo à ;falta de coragem e ao desespero;. ;Os pecadores devem reconhecer sua culpa na totalidade da verdade;, exigiu. Ainda segundo Bertone, o assunto era ;especialmente abominável; e ;humilhante;.

O mais recente escândalo de pedofilia provocou uma reação sem precedentes do papa Bento XVI e já forçou a renúncia de quatro arcebispos de Dublin. Pela primeira vez, ele agendou dois dias de audiências com o grupo de bispos. A delegação foi recebida pelo líder católico durante a manhã e a tarde de ontem. Um novo encontro está marcado para hoje cedo. De acordo com o cardeal irlandês Sean Brady, Bento XVI está ;muito preocupado; com o caso e teria preparado, ;com muita atenção;, o encontro com os religiosos. Em 11 de dezembro passado, durante audiência, Brady ouviu do papa a expressão ;crimes abomináveis;.

Bento XVI também se disse ;profundamente perturbado e angustiado; ao tomar conhecimento de um relatório da Comissão de Investigação presidida pela juíza Yvonne Murphy e publicado em novembro ; o dossiê enumera 325 acusações de abuso na Arquidiocese de Dublin entre 1975 e 2004. E aponta que uma sucessão de arcebispos e auxiliares compilaram registros confidenciais sobre casos de abusos de crianças envolvendo mais de 100 padres desde 1940.

Carta


A expectativa é de que o Sumo Pontífice divulgue uma Carta Pastoral ainda hoje. Uma versão do documento ; que contém instruções para os bispos de um determinado clero ; vazou no mês passado. Segundo o jornal The Irish Times, o texto provavelmente não trará preocupações excessivas com problemas administrativos, burocráticos e organizacionais da Igreja na Irlanda. O foco será lembrar os fiéis do histórico papel da instituição na propagação do cristianismo. O fato reforça o incômodo que o assunto representa para a Santa Sé: a Carta Pastoral é uma iniciativa pouco comum do papa.

Segundo a emissora britânica BBC, organizações não governamentais que representam vítimas de abusos sexuais escreveram uma carta aberta a Bento XVI, na qual pedem a renúncia de Martin Drennan, bispo de Galway e o único religioso identificado no relatóruo de Yvonne Murphy ainda na ativa. As entidades também esperam que o papa instrua os bispos irlandeses ;a cumprirem totalmente com as normas de proteção à criança, incluindo o relato de todas as preocupações ou queixas às autoridades civis para investigação;.

Em entrevista ao Correio, por e-mail, o vaticanista norte-americano Vincent Lapomarda defendeu a política do Vaticano. ;O papa está totalmente correto em condenar o abuso desse modo. Se os bispos tiverem trocado os padres suspeitos de uma paróquia a outra, terão que renunciar.; O especialista acredita que a prática de realocar padres contribuiu para que os fiéis católicos desacreditassem na Igreja. ;Isso ocorreu em Boston, e o arcebispo teve que deixar o posto para que a Igreja reconquistasse a confiança de seu rebanho;, lembra.

Entretanto, Lapomarda duvida que Bento XVI divulgue uma Carta Pastoral sobre o escândalo. ;Qualquer pessoa familiar com a história da Igreja sabe que tudo o que tinha de ser dito e feito já o foram pelos papas João Paulo II e Bento XVI;, comenta, ao referir-se aos casos de pedofilia que explodiram nos Estados Unidos em 2002, ano chamado de annus horribilis. Ele credita a pedofilia ao ;resultado do mal no mundo e à manifestação nos religiosos que traíram suas obrigações;. ;Tais escândalos não são evidentes apenas entre sacerdotes católicos, mas entre médicos, advogados, políticos e ministros de outras religiões;, diz. Para Lapomarda, os líderes de várias igrejas tendem a considerar mais o peso de suas responsabilidades, para evitar que pessoas com tendência à pedofilia sejam colocadas em posições importantes.


LÁGRIMAS DO CORAÇÃO

O papa Bento XVI não conteve a emoção e chorou no domingo, ao visitar um abrigo para pessoas carentes mantido pela organização humanitária católica Cáritas, em Roma. ;As lágrimas de Bento XVI são o símbolo de sua visita ao albergue situado na estação ferroviária Termini, de Roma. São lágrimas que saíram do coração do papa ao ouvir as palavras de um dos pobres;, afirmou o L;Osservatore Romano, o principal jornal do Vaticano. As câmeras de TV não registraram as lágrimas de Bento XVI, derramadas no momento em que ele se dirigia aos pobres.


PEDOFILIA E OMISSÃO

Entre 1975 e 2004, abusos sexuais foram cometidos por religiosos contra crianças sob tutela da Igreja Católica na Irlanda e acobertados por quatro arcebispos de Dublin

Abuso em números

; Um padre admitiu ter abusado sexualmente de mais de 100 crianças, enquanto outro admitiu que, ao longo de 25 anos de sacerdócio, cometia a prática a cada 15 dias

; A Comissão de Investigação da Arquidiocese de Dublin investigou queixas de 320 crianças contra 46 padres

; Dos 46 sacerdotes investigados, 11 se declararam culpados

Outras conclusões

; As autoridades da Igreja fracassaram em implementar a maior parte das leis canônicas para lidar com o abuso sexual de crianças

; Todos os arcebispos de Dublin estavam cientes de algumas das acusações

; Pelo menos até metade da década de 1990, a Arquidiocese de Dublin tinha como preocupações a manutenção do segredo, a prevenção de escândalos, a proteção da reputação da Igreja e a preservação de suas posses. Todas as outras considerações, incluindo o bem-estar das crianças e a justiça das vítimas, estavam subordinadas a essas prioridades

Sob investigação


Desmond Connell
Arcebispo de Dublin entre 1988 e 2004
; Acadêmico sem experiência em paróquias, Connell demorou a reconhecer a gravidade da situação, quando ascendeu à Arquidiocese de Dublin, em 1988. É acusado de não ter denunciado os pedófilos às autoridades. Em 1995, descobriu-se que ele manteve em segredo ao menos 11 casos de abuso sexual


Entrevista - Joseph Fessio


Em 1975, o padre Joseph Fessio concluiu sua tese de doutorado na Universidade de Regensurg, na Alemanha Ocidental. O então professor Joseph Ratzinger, atual papa Bento XVI, foi seu orientador durante o curso. Três anos depois, fundou nos Estados Unidos a Ignatius Press, uma editora especializada em divulgar textos e livros do pontífice, além de publicações católicas. Em entrevista ao Correio, por e-mail, o ex-aluno de Bento XVI falou sobre a reunião do papa com os bispos irlandeses. Fessio, 69 anos, encontra-se em Roma, onde participou ontem de uma audiência com o monsenhor Damiano Marzotto Caotorta, subsecretário da Congregação para a Doutrina da Fé. Segundo o padre jesuíta,

Damiano havia estado horas antes com os bispos irlandeses. O papa Bento XVI está engajado em uma campanha para restabelecer a confiança dos irlandeses em seus bispos?

Não acredito que haja uma campanha em especial. Acho que o papa tenta ajudar, onde quer que ele esteja, a ;fortalecer os irmãos;. A melhor coisa que ele pode fazer pela Irlanda (e por qualquer outro país) é ter um cuidado especial em nomear bispos confiáveis e corajosos. Eu acredito que Bento XVI tem feito isso nos Estados Unidos. A recente indicação de André-Mutien Léonard como novo arcebispo de Bruxelas é outro bom exemplo.

Por que vemos abusos sexuais dentro da Igreja Católica em países como Irlanda e EUA?

A raiz principal desses escândalos é a rejeição do Humanae Vitae (o ensinamento milenar da Igreja Católica, que começa com os livros Gênesis 1 e Gênesis 2), no que diz respeito à indissolubilidade dos fins de procriação e união do casamento. Uma vez que isso é negado, o prazer sexual torna-se autônomo e não há base para proibi-lo entre os solteiros, entre as pessoas do mesmo sexo ou entre seres humanos e animais. É apenas um prazer, como tomar um bom banho morno ou um drinque. Esse é o lado sexual. Mas há o lado intelectual: quando professores de seminários ou seminaristas negam um ensinamento fundamental da Igreja, eles se declaram autônomos em assuntos morais e doutrinários. Por causa do pecado original, todos nós estamos em uma condição de naufrágio. A única segurança está no barco de Pedro. Aqueles que pularem do barco vão se molhar ou afundar.

O senhor vê alguma ligação desses escândalos com a obrigação do celibato?

O celibato não tem absolutamente nada a ver com um escândalo que está enraizado na atração pelo mesmo sexo (em sua maioria) e em uma desordem profunda. A incidência de abuso sexual entre pastores protestantes casados e seus alunos é substancialmente mais alta do que entre padres celibatários. Não existe nada no celibato que leve a um desejo preferencial por garotos. Esse desejo é tão repugnante para homens solteiros como para casados. A ;falta de escape sexual; não despertaria em uma pessoa normal um desejo de ter relações com um menor mais do que o desejo em fazer sexo com a avó dessa pessoa, por exemplo.