Jornal Correio Braziliense

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Distribuição lenta de alimentos estimula aumento de saques

Líderes de gangues retornam a favelas e ONU estuda reforçar policiamento

A madrugada de ontem foi ainda mais perturbadora para a assistente administrativa Geraldine Padovanive Scown, 24 anos. Como se não bastassem a fome, a sede e os corpos ainda espalhados pelas ruas de Porto Príncipe, a violência ganha contornos preocupantes. ;Não conseguimos dormir à noite, pois algumas pessoas armadas vieram até nossa casa. Escutei tiros a noite inteira;, afirmou ao Correio, por e-mail. ;As gangues querem dinheiro, carro. Se você não dá, o matam. Elas não estão mais restritas a Cité Soléil. Agora, se espalharam pelo país;, acrescentou. Geraldine se desespera e apela ao mundo por uma intervenção internacional. ;Por favor, por favor, não queremos mais o governo haitiano. Se não mandarem os marines rapidamente, todos nós estaremos mortos;, disse. O chanceler brasileiro, Celso Amorim, disse ontem que a Organização das Nações Unidas (ONU) deve decidir hoje se aumenta o efetivo no país ; atualmente, 6 mil capacetes azuis e 2,2 mil policiais cuidam da segurança.

[SAIBAMAIS]Aos 32 anos, a também haitiana Stephanie Rigaud evita sair às ruas. ;Além de os prisioneiros terem escapado após o terremoto, a ajuda internacional veio tarde demais. As pessoas tentam invadir casas de outras para roubar comida e água;, relatou, antes de admitir ter ouvido tiroteios desde sexta-feira. ;Aqui em casa, somos 15 pessoas, muitas das quais perderam suas casas. Apenas para constar, temos armas conosco. Não abrimos portas para quem não conhecemos;, acrescentou a mulher, que também vive no bairro de Pétionville.

Também pela internet, Steve Matthews, porta-voz da Equipe de Resposta Rápida Global a Emergências da organização não governamental Visão Mundial, declarou não ter presenciado episódios de violência, mas admite que já escutou vários relatos. ;Isso não é de causar surpresa. Centenas de milhares de pessoas estão desabrigadas e é fisicamente impossível levar auxílio a todas elas imediatamente. Mas todos estamos trabalhando duríssimo para ajudá-las;, admitiu. No sábado, a ONG distribuiu kits de higiene, roupas e água para 750 famílias. ;Faremos o mesmo para mil famílias hoje;, garantiu, no início da tarde de ontem.

Segundo a agência de notícias France Presse, a polícia de Porto Príncipe abriu fogo contra um grupo de saqueadores e matou pelo menos um deles, no momento em que centenas de pessoas roubavam o mercado Hyppolite. O saqueador, de cerca de 30 anos, foi atingido por tiros na cabeça. Em Pétionville, uma multidão linchou a pauladas um haitiano acusado de roubo e arrastou seu corpo pelas ruas, enquanto fotógrafos registravam a cena assustadora.

Para piorar a situação, membros de gangues fortemente armadas retomaram o controle da Cité Soleil, a maior favela da capital haitiana, praticamente colocando por terra o trabalho da Missão de Estabilização da ONU no Haiti (Minustah) ; liderada pelo Brasil. Montados em motos e ostentando fuzis e pistolas, eles começaram a semear o terror em alguns pontos de Porto Príncipe. No meio dessa atmosfera de pânico, desespero e fome, milhares de haitianos tiraram o dia de ontem para rezar. ;Tudo o que fazemos, fazemos em nome de Deus;, afirmou ao Correio a bancária Jozeth K. Guillaume, 39 anos. ;Mas você pode olhar para o rosto do meu povo e ver o desespero. O olhar deles não é de esperança. Estamos condenados;, lamentou. Ela enterrou ontem o tio e a madrasta. ;Você podia sentir o odor dos corpos em decomposição. Algumas pessoas apenas enrolaram seus mortos em tecido ou sacos.;

Ajuda

Em meio ao caos, helicópteros dos EUA lançaram caixas com água e comida, provocando confrontos entre centenas de haitianos. No sábado, as tropas americanas distribuíram 2,5 mil refeições em Pétionville e estabeleceram 14 pontos de assistência à população. No entanto, a ajuda é considerada lenta demais.

A União Europeia estuda o envio de mais de 100 milhões de euros (US$ 143 milhões), dinheiro que será usado na reconstrução do país. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha considerou ;desesperadora; a situação de milhares de haitianos. ;O acesso às barracas, aos banheiros, à água, aos alimentos e aos cuidados médicos continua muito limitado;, afirmaram especialistas da entidade. Já a organização humanitária internacional Médicos sem Fronteiras (MSF) revelou ;nunca ter visto tantos ferimentos tão graves; nas vítimas.

O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, desembarcou em Porto Príncipe. Durante a viagem, classificou a situação como ;a mais grave crise humanitária enfrentada há décadas;. No Haiti desde sábado, a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, reuniu-se ontem com o presidente René Préval.

Depoimento


;Eu estou devastado;


Esse é um momento muito difícil pelo qual estamos passando. Muitos de nós vimos todas as nossas vidas passarem em 36 segundos. Eu estava na casa de meu tio, jantando e sorrindo, quando a casa inteira começou a chacoalhar. Parecia que um tanque de guerra estava a caminho. De repente, tudo começou a sacudir. Mas a pior parte é que essa sensação não ia embora. Naquele momento, eu realmente pensei que fosse morrer. Vi minha vida como se fosse um flash, bem diante de meus olhos.

Já se passaram quatro dias desde o terremoto e ainda estamos sentindo pequenos tremores. Não sabemos quando eles vão parar. Neste momento, pensamos que o pior ainda está por vir, porque já estamos sem água e sem comida. O país está um caos total. As pessoas estão saqueando todos os grandes depósitos do centro, já que a polícia se ausentou por completo. Eu estou totalmente devastado e triste. E espero, realmente, que os Estados Unidos tomem o Haiti, assumam o controle de meu país, assim como Porto Rico. Não há maneira de fazermos isso por nossa conta própria.


Steve Lemite, 24 anos, é empresário haitiano e vive em Porto Príncipe


Insegurança


;A ajuda internacional veio tarde demais. As pessoas tentam invadir casas de outras para roubar comida e água;
Stephanie Rigaud, 32 anos, moradora de Porto Príncipe

;Você pode olhar para o rosto do meu povo e ver o desespero. O olhar deles não é de esperança. Estamos condenados;
Jozeth K. Guillaume, 39 anos, bancária, moradora de Porto Príncipe